AGENDA CULTURAL

17.3.16

Em Paris, mas também em Araçatuba

Nosso provincianismo araçatubense (e eu gosto dele, sou um dos provincianos) fez com que eu recebesse dois telefonemas de denúncia. O secretário municipal de Segurança, Coronel Kerlis Camargo, me telefonou:
- Hélio, há um pessoal pintando a base da guarda municipal que se encontra na antiga estação ferroviária! É de seu conhecimento?

- Sim, coronel, mas o meu erro foi não comunicá-lo, ou melhor, nem me lembrei que na antiga estação funcionava uma base da guarda municipal.   
Secretário municipal de Cultura Hélio Consolaro (chapéu), Rafael Suriani (no meio, camiseta regatas preta) e Fernando Fado, organizador da Semana (último à direita) na plataforma da antiga estação ferroviária
Pedi ao Sancler para olhar o que estava acontecendo. Se a equipe do grafiteiro Rafael Suriani estava pintando as dependências da Secretaria Municipal de Segurança. Voltou dizendo que estava pintando vãos bem distantes. 

Depois de alguns momentos, um advogado amigo, me liga:

- Hélio, há uns doidos pintando os vãos da antiga estação ferroviária. Você está sabendo?

Expliquei que o famosíssimo grafiteiro Rafael Suriani estava apenas pintando a palavra "diversidade", uma letra em cada vão na antiga estação ferroviária.

Não estou reclamando dos telefonemas, apenas estou registrando que as pessoas estão preocupadas com sua cidade e cada está cuidando dela a seu modo.

A 2a. Semana da Diversidade Sexual de Araçatuba trouxe Rafael Siriani para grafitar lugares públicos de Araçatuba, como a antiga estação ferroviária, a caixa d'água da praça João Pessoa e a rodoviária. A sua especialidade é retratar "drag queen", como faz em Paris. 

Suriani, cujo sobrenome é de origem síria, passou os últimos três meses em residência por São Paulo, sua terra natal. Há sete anos ele vive em Paris, e para se aclimatar na cidade europeia cumpriu uma maratona de fervo em clubes, inferninhos, casas de show, botecos e esquinas, a fim de (re)conhecer a cara da cena drag paulistana.
“Em São Paulo, fui atrás desses artistas na noite e tenho conhecido de perto o universo drag. Isso trouxe mais consistência ao trabalho, as pinturas adquirem mais força quando se tratam de personagens que conheço pessoalmente”, diz.
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Confira aqui uma entrevista exclusiva com Suriani, em São Paulo para a abertura da exposição individual It’s Not Personal, It’s Drag!, que aconteceu de 04 a 18 de abril na TAG Gallery (Rua Líbero Badaró, 336 – 3º andar – Centro / São Paulo).
O que você tem a dizer sobre a repecrussão em torno desse trabalho? No começo, até onde eu vi na Internet, a ideia era prestar reverência às drags que participaram do Ru Paul´s Drag Race. Mas diante da ostensiva da direita conservadora parisiense aos direitos da classe LGBT, o trabalho assumiu outros contornos…
Estou muito contente com a recepção que esta série tem tido pelo público em geral, mas, especificamente, no Brasil e nos Estados Unidos. Em Paris, como a cena drag é muito reduzida, as pessoas tendem a interpretar os personagens como mulheres, muitos nao sacaram o conteúdo real do trabalho…
Em 2013 participei de um projeto da associação ACT-UP que reuniu, em Paris, artistas em prol das causas glbt. Nesse momento, projetos de leis que garantem à igualdade de direitos para casais do mesmo sexo estavam sendo tratados na esfera politica. Houve nessa época, grandes manifestações nas ruas, organizadas por grupos conservadores, para impedir o avanço das leis, em nome dos valores tradicionais da “família”.

Senti necessidade de expressar a beleza da diferença, a aceitação e a liberdade de expressão, de forma alegre e positiva. São valores difundidos pela cultura drag! -Suriani
Nem todo mundo sabe, mas Paris é uma cidade que respira também a arte urbana. O graffiti político nasceu aí, em 1968, durante a revolução estudantil. A cidade é berço de Blek Le Rat, Fred le Chavalier, Sean Hart, e outros. O que há de bom na cena de Paris?
A cena de Paris é muito rica e variada. Tanto os grafites que encontramos nas periferias e nas linhas de trem, quanto as colagens que aparecem pelas ruelas do centro. O que ha de bom é justamente essa variedade de linguagens e propostas. Gosto muito do trabalho da Kashink, que é muito alegre e toca em temas parecidos com os que tenho abordado. Levalet é um jovem artista que tem surpreendido nas ruas com suas colagens realistas, na linha do grande Ernest-Pignon-Ernest.

Kashinsk: A cultura gay na ótica de uma grafiteira
Comparando à cena drag, ela parece ainda não ter saído totalmente do armário. De repente, há drags espalhadas por toda a parte. E elas fazem sucesso… Você pensa sobre isso? O que as pessoas comentam sobre o trabalho?
Como disse anteriormente, a cena drag parisiense ainda é muito reduzida. a França ainda nao foi atingida pela “febre Rupaul” que tem emanado dos Estados Unidos nos últimos anos. Recentemente descobri alguns grupos de jovens drag queens que estão começando a fazer coisas bem interessantes, como por exemplo o coletivo “House of Moda” que mistura, performance, poesia, moda… O mainstream francês ainda tá pra descobrir tudo isso…

Adore marca ponto num muro do Beaubourg


A série Born Naked vai ganhar um desdobramento no Brasil. Três meses aqui para desenvolvê-la, e o que você viu de tão diferente assim? Se comparado à Paris, ou mesmo à São Paulo de 5 anos atrás, o que há de novo?
Chegando aqui me deparei com uma cena muito vasta de drag queens. O Brasil é um pais festivo e exuberante em geral… A casa Blue Space é o centro dessa cultura. O palco oferece uma estrutura bem sofisticada para as performances, com estruturas que as permitem descer do teto, aparecer do chão. O palco é giratório, e conta com telões de ultima geração que incrementam as performances! Existe em São Paulo e no Brasil uma quantidade enorme de performers. Um dos que mais me chamaram a atenção foi o Ikaro, de quem acabei ficando amigo e realizando vários retratos. O Ikaro é um personagem andrógeno, que diferentemente da maioria das outras drag queens, não busca parecer completamente com uma mulher. Ele não usa peruca, é careca e tem toda uma beleza única, além de ser um performer de muito talento. Fiquei entusiasmado também com a energia do trio Milano, composto por Tiffany Bradshaw, Amanda Sparks e Peneloppy Jean. Além de capricharem no look, ainda atuam como djs.


Thomas Neuwirth, mais conhecido pela personagem drag Conchita Wurst, é um cantor austríaco.
Conhece outros artistas de rua que, assim como você, abordam as questões de gênero, da sexualidade, de pertencimento, relacionadas ao universo gay? 
Tenho certeza que existem artistas trabalhando esse tema. A Kashink, em Paris, pinta casais gays em seus murais, de uma forma lúdica e inocente. Mas além dela nao saberia citar outros nomes… Acho que esses temas nao adquirem muita visibilidade…
O que você está achando disso tudo? E o que pode mudar no seu trabalho daqui pra frente?
Meu trabalho esta adquirindo uma dimensão política evidente. O contato direto com a cena drag tem sido muito marcante. Tenho me identificado com esses artistas, que como eu, são independentes e se divertem praticando uma arte transgressora. A liberdade conquistada por eles pra exercer a arte de drag me inspira muito, além da paixão que os move a superar todos os obstáculos impostos pela sociedade. Tudo isso tem dado força às minhas intervenções, e tenho a intenção de continuar nessa direção, explorando a cultura drag parisiense e de outras cidades da Europa.

Texto originalmente publicado no Supergiba Arte Contempoânea

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