AGENDA CULTURAL

11.2.20

Alagados das águas de março

E a cidade que tem braços abertos num cartão postal
Com os punhos fechados na vida real
Lhe nega oportunidades
Mostra a face dura do mal (Paralamas do Sucesso)

Enchentes antigas no Recife-PE
Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Araçatuba-SP

Ficar vendo as enchentes na frente da televisão, apoiado no encosto almofadado da poltrona, pés no seco, e na imagem da TV aquele povo se danando com as casas destruídas, ruas inundadas é cômodo.

Aí o locutor fala que metade das verbas reservadas do orçamento de 2019 no combate às enchentes não foi aplicada. Isso no Estado de São Paulo.

E os telespectadores ainda fazem humor mórbido na sala, ouvindo e rindo de gente que dizia ter perdido tudo, se não tinha nada. Nesse momento, alguém podia  cantar "Alagados", de Paralamas do Sucesso.

Depois vem a propaganda do intervalo dos jornais, aquele mundo maravilhoso, carros luxuosos. Após alguns minutos, se esquece de tudo, só fica aquela impressão para comentar amanhã numa roda de conversa.

Até que um dia, há uma enchente no fundo do quintal de sua casa. Sujeira, lama. Quase um dia para limpar tudo, pôr as coisas em ordem. E na hora de limpar, vassouradas pra cá, vassouradas pra lá, a gente fica imaginando o sofrimento das pessoas durante as enchentes urbanas. Isso aconteceu comigo no ano passado, senti o problema na carne em menor proporção. 

Apenas sabemos o que é um doente terminal, uma pessoa deficiente, um presidiário, quando houver um dentro de casa. Nós, humanos, temos limitações de se colocar no lugar do outro. 

As águas urbanas requerem os vales e várzeas invadidos por nós, isso acontece  até março de cada ano. Essas invasões ocorrem com  construções num impulso da especulação imobiliária, na falta de planejamento urbano. 

A música "Águas de março", de Tom Jobim, composta quando ele estava num de seus sítios em março de 1972 e descreve uma enchente rural, onde as águas eram senhoras de seu espaço. Assim mesmo, em sítios e fazendas cruzadas por rios e córregos, as enchentes matam animais. 

É o vento ventando, é o fim da ladeira
É a viga, é o vão, festa da cumeeira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira
(Águas de março - Tom Jobim)

Como diz a letra de "Alagados", a enchente urbana é uma tragédia porque acreditamos em que alguns fazem da Terra o céu, enquanto a grande maioria sabe que o inferno começa aqui. E as igrejas prometem o céu aos alagados, como fazem as promessas eleitorais.  



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