AGENDA CULTURAL

28.4.20

O pagador de dívidas subjetivas

Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Araçatuba-SP 

Cronista já encontra dificuldade para escrever quando está solto no mundo, na multidão das ruas, se não vir tudo com o olhar de estranhamento, como se aquele lugar não fosse a sua cidade, não acha assunto. Tudo parece muito igual, sem novidade.

Imagine um cronista em quarentena, trancado em casa, como estou agora, só vendo a Globo, memes no zap e lendo jornais digitais. O cara endoidece, só escreve sobre coronavírus. O leitor não aguenta mais, deixa o cronista falando sozinho.

- Lá vem o Consa  de novo com seu corona...

Estava buscando assunto, pensando no melhor para o caro leitor... Eis que a campainha tocou. Pensei: cobrador não respeita nem a quarentena da gente. Pega a doença, mas não deixa de receber centavos. 

Errei. Era o furgão do correio. O funcionário tinha um pacote na mão. Já foi logo dizendo que não precisava assinar nada e nem pagar coisa alguma. Que bom!

Remetente: José Ferreira Ramos Netto. José Ferreira, companheiro de faculdade, ou seja, viajei para 50 anos atrás. Outro dia ele me pediu pelo zap o meu CPF. Recomendei cuidado com o uso daquela preciosidade. 

E não era que ele tramava me presentear com alguma coisa! Aí aconteceu o ritual da abertura sob o olhar curioso da Helena. Rasga aqui, descola ali, retira o grampo acolá. Que será? O que o cara está aprontando... 

Estaria ele me devolvendo as minhas cuecas velhas, furadas, do tempo em que moramos em república em Penápolis?  Ou eram  as calcinhas da empregada que teve coragem de trabalhar numa casa com nove rapazes... Desconfiado, fui terminar de abrir o pacote meio afastado da Helena.

Nada disso, eram copos e facas personalizadas para o meu fundo de quintal! Um presentão! Telefonei para o amigo para dizer que a encomenda chegara, agradecer e perguntar qual foi o motivo de tão precioso presente. 

Aí o Consa quase chorou. Ele respondeu que era uma forma de  gratidão de há 50 anos, quando trabalhamos juntos na Casa da Agricultura de Penápolis,  estudávamos na Funepe e morávamos em república. Todas as casas velhas, caindo, foram alugadas para estudantes.  

Segundo ele, andei-lhe fazendo alguns favores e agora resolveu me dar tal um mimo como agradecimnto. Uma dívida que não estava contabilizada. 

Para ser mais descritivo: um faqueiro para churrasco e sashimi, com pedra de amolar, seis taças para cervejas, tudo personalizado com meu nome e da Helena. Se eu já bebo em qualquer caneca, depois da quarentena, o Consa vai chamar seus amigos no maior chiquê!


Como o José Ferreira é um artista plástico, artesão fino, capricha em seus presentes, sua intervenção nas facas e nas taças foi primordial. Meu nome nas facas e nos copos. Inchou o meu ego.

E eu achando que fosse o cobrador, quando apareceu mesmo foi o pagador de dívidas subjetivas, que só estavam marcadas nas cadernetinhas do coração dele.

Se gostou, entre em contato com o José Ferreira:
https://www.facebook.com/joseferreira.ramosnetto.
Quem sabe atenderá a uma encomenda. O cara está, aposentado, procurando coisa para fazer...

Crônica pronta!

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