Hélio Consolaro
Em nosso cotidiano, há cenas líricas, basta ter olhos para vê-las. Alguns preferem contar buracos no asfalto, outros levantam os olhos e contabilizam estrelas. E a vida vaza pelos vãos.
Quem passa pelo Calçadão da Marechal, Araçatuba, sempre percebe uma sanfoneira, rente à parede de uma loja, que compensa sua deficiência num dos sentidos, alegrando os transeuntes.
Diante da indiferença de sua arte, já que a música é chave do coração, ela teclava, como a querer juntar algumas moedas da despensa da caridade pública.
Na primeira semana de cada mês, o Calçadão da Marechal vira formigueiro de gente. Pagamento das contas, compras, alguns avançam nos bolsos alheios, anunciando falsas ofertas, e o assalariado se defende, agindo mais com a razão, inclusive do possível sentimentalismo exalado das teclas e dos botões daquela sanfona.
Dessa vez, a sanfoneira não estava sozinha. Na frente dela, um senhor de cabelos bem grisalhos, magro, vestido adequadamente, dançava ao ritmo da música. Não fazia parte do script. Parou, olhou e seguiu o ritmo com corpo.
Não estava bêbado, talvez inebriado pela saudade. Como se segurasse as mãos de uma princesa, arrastava os pés sem errar os passos.
Por seu jeitão e pela roupa de passeio que vestia, parecia de origem italiana, não era nenhum pândego. Talvez tenha dado gorjeta graúda para que a sanfoneira não parasse, não estragasse o sonho vivido naquela muvuca, provando que a interioridade é possível, mesmo fazendo parte da multidão.
Aquele lindo rapaz, cobiçado pelas moças da redondeza, dançava embaixo de uma barraca, quando se comemorava um casamento naqueles sítios de Cafezópolis.
Havia pouco divertimento, muito trabalho pesado, faltavam braços para tanta roça; mas aos sábados, os moços andavam léguas, com seu cavalo tordilho, à busca de um baile. Montaria bem enfeitada para que não desfizesse a elegância do cavaleiro.
Cadê a moça bonita com quem se casou? Onde estão os filhos?... Talvez dançasse naquela hora a valsa dos nubentes, e toda aquela gente do Calçadão da Marechal eram os convidados.
O dançarino, de olhos fechados, viajava, viajava nos acordes da sanfona. Dançava, dançava sem nenhum pudor, como se já tivesse entendido os segredos da vida: soltar a franga é bem melhor que deixar o pinto preso. Flutuava em suas memórias.
Este croniqueiro nem parou, esperando o encerramento daquele espetáculo cultural improvisado. Nem quis entrevistar o dançarino destemido. Preferiu exercer o seu lirismo e passá-lo a seus leitores.
A vida não é essa coisa mascada que nos deram para que continuemos a ruminá-la. A sua sublimidade precisa ser buscada, espremida dos frutos mais azedos, como fazia aquela par: sanfoneira e dançarino.
5 comentários:
Atenção...
Olhos de ver e ouvidos de ouvir...
Feche os olhos e tape os ouvidos.
Ação.
Pois o senhor deveria ter dançado junto!Por que não entrou com o moço embaixo da barraca e não aproveitou para viver mais um momento sublime? Ahhhhh! Perdeu uma oportunidade e tanto. Dançar é bom demais, ainda que o parceiro nos pise os pés a gente releva. A dança supera qualquer dorzinha. Dançar é, verdadeiramente, um momento muito prazer.
Pois o senhor deveria ter dançado junto!Por que não entrou com o moço embaixo da barraca e não aproveitou para viver mais um momento sublime? Ahhhhh! Perdeu uma oportunidade e tanto. Dançar é bom demais, ainda que o parceiro nos pise os pés a gente releva. A dança supera qualquer dorzinha. Dançar é, verdadeiramente, um momento muito prazer.
Por que não entrou com o moço em baixo da barraca e viveu um momento sublime?
Ficou com medo de dançar?
Crônica sublime...
...a sua maneira de narrar a cena me fez 'ver' a cena acontecer como se estivesse lá, ao vivo.
Lindo!!!
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