Dalton Trevisan posa para o Jornal da Tarde em 1968, época em que dava entrevistas com prazer. 'Começo a gostar dessa coisa toda', disse na ocasião
Sempre com um boné, cuja aba cobre seus olhos, e caminhando em linha reta, sem acompanhar o que acontece ao redor, o escritor Dalton Trevisan, 85 anos, se desloca pelos mesmos trajetos há décadas — um pequeno tabuleiro da região central de Curitiba, que vai do Alto da XV, nas imediações da Reitoria da Universidade Federal do Paraná, ao extremo oposto do Centro, um pouco além da praça Osório. Nesse umbigo da urbe, ele se move incógnito e sempre desconfiado. Tal obsessão por uma identidade anônima tem uma função literária. Permite que ele seja o espião de uma cidade que, a cada livro, fica mais delimitada. Por isso, não se engane o leitor que queira reconhecer as várias faces da capital paranaense. A sua cidade tem conexões biográficas com a província em que ele viveu na juventude, e o escritor insiste em recuperar as personagens mais agressivas, as periféricas, e também algumas líricas, construindo assim um modelo reduzido de Curitiba. Coletor de histórias desde sempre, ele frequenta um pequeno círculo de amigos, gente da mais variada procedência, garimpando casos, episódios, documentos e depoimentos pessoais — todo um material humano que será transportado para a sua linguagem e sua visão de mundo, em um processo de alquimia literária. Mudam os personagens e os dramas, mas a paisagem de fundo é sempre a mesma: a perversa província. Nem sempre, no entanto, Dalton Trevisan esteve afastado da vida literária. Na década de 1940, ele foi um dos centros periféricos da cultura nacional. Em uma delegação de rapazes, que se antecipou aos acadêmicos locais, ele participou do II Congresso Brasileiro de Escritores, em Belo Horizonte, em 1947, com jovens que faziam a revista Joaquim (1946-1948). Dalton unia as juvenilidades (lá estavam, entre outros, o poeta José Paulo Paes e os críticos Wilson Martins e Temístocles Linhares) para limpar o campo literário dominado pela Geração de 45. Dalton estreia assim como contista e editor de uma revista iconoclasta. Nas páginas dessa publicação, ele assina críticas contra grandes nomes locais e nacionais. Emiliano Perneta, ícone da poesia simbolista, é tratado, por exemplo, como um produto bairrista em artigo intitulado:Emiliano, Poeta Medíocre (julho de 1946). Um escritor antes cultuado pelos jovens também se torna alvo da artilharia em 1947 — o Monteiro Lobato de Urupês, acusado por ele de promover um "terceiro indianismo", sucedendo os de I-Juca-Pirama (Gonçalves Dias) e Iracema (José de Alencar). "Monteiro Lobato, ainda em vida, é um autor póstumo", decreta o jovem Dalton.
"ESTOU BACANA NA FOTO" Depois de participar desse grupo, que referenda sua produção (Temístocles Linhares e Wilson Martins escrevem em jornais de circulação nacional sobre sua obra), Dalton se une a um núcleo do Rio de Janeiro criado em torno de Otto Lara Resende e Rubem Braga. É o seu ambiente de maturidade, em que se fortalecerão suas ideias de uma literatura leve, lírica, erotizada, fiel aos pequenos nadas da vida. Agora já é um Dalton Trevisan consagrado como mestre. Esse reconhecimento vem com o Prêmio Nacional de Contos de 1968, promovido pelo governo do Paraná. Dalton vence, deixando para trás, entre outros, Lygia Fagundes Telles, Luiz Vilela e Ignácio de Loyola Brandão. Na comissão julgadora, gente de peso, como Fausto Cunha, Rubem Braga, Peregrino Junior e Autran Dourado. Na entrega do prêmio, Luiz Vilela entrevista o autor para o Jornal da Tarde, de São Paulo, em 6 de julho de 1968. O escritor curitibano fala de contos baseados em histórias de amigos e de parentes, pede para que o nome das filhas conste na reportagem e, depois de se deixar fotografar, e vendo o resultado, confessa: "Puxa, não é que estou bacana aqui? Estou começando a gostar dessa coisa toda..." Apesar de uma timidez crônica, reconhecida por todos que conviveram com ele, Dalton se mostra extremamente afável e de bem com a mídia nesse momento de consagração — estava com 43 anos. Masno futuro ocorrerá justamente o contrário, e ele seguirá uma rota cada vez mais reclusa, potencializando a sua timidez, e fugindo ao confronto direto com muitas pessoas reais que serviram de modelo a personagens nada agradáveis. Temístocles Linhares, que acompanhou toda a carreira do contista, reclama da ingratidão do amigo no dia 4 de outubro de 1982 (o trecho está na coletânea Diário de um Crítico, vol. VI), depois do grande sucesso de Essas Malditas Mulheres (1982), livro que sai pela Record com uma tiragem inicial de 20 mil exemplares, quando Trevisan já é o maior contista do Brasil: "É certo que Dalton Trevisan nunca foi muito acessível. Era sempre muito difícil aproximar-se dele. Mas isso não acontecia com os amigos ou as pessoas mais chegadas. Agora, porém, elas também são evitadas. Cada vez mais isolado, ele não procura ninguém, a não ser conhecidos eventuais, mas não de seu nível intelectual. Não só as suas personagens são neuróticas e mesmo monstruosas. Assim, agora só resta a Dalton escrever a sua autobiografia. Ele próprio, quer me parecer, seria a sua maior personagem".]
O AMIGO QUE ROUBOU UM CHEQUE Com esse crescente isolamento do autor, que insiste em dizer que só a obra tem valor, seus livros vão passar a se encher de recados contra desafetos, textos respondendo a provocações, e algumas avaliações críticas. É uma forma de rascunhar a própria biografia, ocultando-a no meio dos textos de ficção e lhes dando o mesmo status. Entre as inúmeras passagens em que ele usa o espaço ficcional para desancar desafetos, há alguns casos em Dinorá. Nos textos-acusações Santíssima e Patusca e Edu e o Cheque, ele destrata, respectivamente, uma professora que usou trechos de sua correspondência numa tese de mestrado e um amigo de infância, advogado que cuidava de seus negócios, a quem acusa de ter roubado um cheque. A presença do não-ficcional, antes periférica, foi se intensificando nos últimos livros e ganha uma centralidade no recém-lançado Desgracida (Record, 2010), volume que passa a figurar entre os mais importantes do autor. Dividido em duas partes (Ministórias e Mal Traçadas Linhas), ele retorna aos combates da revista Joaquim. Na primeira seção, há contos, mas também piadas, aforismos, citações e poemas. Entre os contos, sobressaemMarishka e Iluminação. O primeiro é um canto amoroso para uma mulher fatal, referência cinematográfica à mulher de Drácula. Longe das Marias de suas narrativas provincianas, as diabas em forma de fêmea, as desgracidas do título, ele elege um ideal feminino universal. Já Iluminação é um conto antológico, que retoma a temática do amor. O narrador volta a um bairro polonês da região, onde teve o primeiro deslumbramento sexual, em busca da fêmea de outrora. Ele a encontra morta, sendo velada numa casa simples. Nessa viagem às coxas brancas da antiga polaquinha, ele não lê apenas a velhice da mulher um dia desejada, entrevendo agora a coxa da filha — reprise da epifania de outrora. Passado e presente se misturam nesse conto, mostrando um narrador unido a um espaço desejante.
"STRIP-TEASE DO CORAÇÃOZINHO" Mas é na segunda parte do livro que está o valor de Desgracida. Nunca antes em sua obra Dalton Trevisan esteve tão à mostra. Dalton publica em forma de contos algumas confissões que são valiosos documentos sobre a sua obra e têm um poder de polêmica muito grande. Ele retoma, nessa empreitada, cartas que havia escrito aos seus amigos mais próximos: Pedro Nava, Rubem Braga e Otto Lara Resende. Por meio desses textos saborosíssimos, ele apresenta uma verdadeira arte da escrita ao recuperar essas avaliações, que, em momentos distintos, enviou a interlocutores reais. Os autores-chave para Dalton, revelados nas cartas, formam um grupo — e que, em parte, coincide com sua turma de amigos no Rio de Janeiro. Pedro Nava, tido por ele como superior a Proust, é um dos destaques. Já Rubem Braga, com suas crônicas, seria uma espécie de irmão de Montaigne e Machado de Assis. Dalton também elege Otto Lara Resende como seu maior interlocutor, o autor de uma grande obra que poderia ter sido e que não foi. Na literatura estrangeira, Dalton idolatra o francês Léautaud, autor de diários ferinos e fesceninos. Para ele, no panteão da literatura se acham ainda Anton Tchékov, um santo leigo, e o seu equivalente nacional, Machado de Assis. Eis o que faz, para Dalton, uma grande literatura:uma linguagem agradável, um olho atento à realidade, fidelidade aos mitos da infância e a capacidade de criar personagens de carne e osso. Ele próprio define a literatura: "O que se espera de um bom e vero escritor (é) o strip-tease do coraçãozinho esfolado e ainda pulsante". É isso que encontramos nos melhores contos desse livro, que ainda tem o valor de apresentar fragmentos de uma espécie de autobiografia, como queria Temístocles Linhares. Uma autobiografia, no entanto, principalmente intelectual. ----- MIGUEL SANCHES NETO é escritor. Autor, entre outros, de Um Amor Anarquista e Chá das Cinco com o Vampiro. O LIVRO Desgracida, de Dalton Trevisan. Record, 240 págs., R$ 37,90. |
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