AGENDA CULTURAL

7.4.11

Pesadelos


Tito Damazo*


       Acordou como se acorda, livrando-se de um pesadelo. Pareceu-lhe um brevíssimo cochilo sobre o livro. 

      Tinha ainda nos ouvidos as muitas vozes que ressoavam das prateleiras dos quatro cantos do cômodo. Uma babel. Murmuravam versos alguns em compassos e descompasso. Outros barinotavam diálogos imensos em tom de vozes diversas. Alguns outros em gestos furibundos declamavam longos textos. E ainda outros, semblantes assustados, olhos esbugalhados, pareciam encolhidos em seu canto.

      Procurara sempre desfazer-se das ideias de que muitos dos sonhos são previdentes ou carregam premonições. Sonhar é estar vivo. Mesmo quando dormindo. E a morte, certamente, não manda recado. Parcos são seus conhecimentos freudianos, porém eles lhe têm ensinado que o sono, tanto o noturno quanto o diurno são resultantes de profundos emaranhados vividos ontem e hoje. 

Todo sonho é um adoidado desvario composto de fiapos da realidade e das mais estrambóticas irrealidades. Nele, estes elementos, por absurdo que possam nos parecer, sobretudo quando acordados, convivem tranquilamente naquele espaço de apagamento de que somos acometidos. Seja nos longos, breves ou brevíssimos, ele nos pega, ora em nítido quadro cinematográfico, ora em obscuro quadro impressionista.

       Enquanto assim divagava, ia pousando espaçadamente os olhos em cada uma daquelas prateleiras, onde, silentes, permaneciam aquelas muitas vozes.  As mesmas que em seu pesadelo se manifestaram? Talvez. 

Presenças tácitas com as quais, há muito, convivia a maior parte de seu tempo. Longevas muitas. Pouco menos algumas. Medianas outras. Mais recentes algumas outras. Iam vindo. Não cessavam de chegar. Às vezes vinham em número. Às vezes só. Ocupando os espaços, exigindo um lugar digno para se estabelecerem. O que volta e meia obrigava-o a reacomodações, a expandir as moradas. Procurava, sim, conscientemente, a lhes garantir adequados espaços.

Longe dele a hipótese do descarte. Comprazia a sua consciência, dando-lhes a aposentadoria devida e merecida. Ficavam por ali. Uns, vez em quando, revisitados. Uns praticamente esquecidos, contudo justa e condignamente repousados, jamais se sentindo inúteis e suportados. Compreendiam bem a marcha dos tempos. Outros, antes deles, tiveram a mesma sorte. Era o irrefreável curso da vida. Bastava-lhes e os gratificava o reconhecimento do direito de descansarem em paz.

Mas, em verdade, ele nunca os esquecia por completo. A vida lhe ensinara que nada é definitivo e que o andar da carruagem humana seguia seu irreversível devir. Adiante. Sempre a diante, todavia sempre também recorrendo, sempre se voltando ao que já fora. Afinal, nada se faz do nada. E então, eis que senão quando.

Ainda assim, havia de admitir que tal pesadelo enunciava-lhe algo. É certo, sabe-se bem, que a lógica dos sonhos é o ilogismo. Daí creditar-lhes atributos de portadores de acontecimentos mediatos ou imediatos, os quais precisam logo ser decifrados, era ter-se na conta de um que aceita a tese de que o destino está à mercê das crendices no sobrenatural. Não tinha conta do quanto tempo estes cochilos ali aconteciam. Mais de década no mínimo. Quase todo dia. Entretanto, não se lembrava de que houvesse tido uma pesadelo. Se o tivera, o absoluto esquecimento era a prova mais cabal de sua insignificância, pois fosse algo impactante como o de agora, não o teria esquecido, como certamente não esqueceria esse.

Seria, será?, clamor de revolta dos que ainda se mantinham intactos e, enciumados, ou com sentimento de preterição, haviam se rebelado? E com isso provocando um caudal de descontentes engrossado pelos esporadicamente acionados. Seria? Se fosse, a tristeza de que já se via tomado tornar-se-ia ainda maior.           

     Amava-os. Tinha a cada um um carinho especial. Toda semana dispensava-lhes escovação removedora de pó e demais impurezas a que se viam expostos. Procurava reparar constantemente as deteriorações decorrentes dos usos frequentes e os emperros advindos das inanições. Se fosse, estariam assumindo profunda ingratidão para com ele.

Súbito, porém, ao mesmo tempo aliviado e apreensivo, pensou: ou andavam desconfiados de que seriam completamente inutilizados, em razão da forte onda de substituí-los pelos livros eletrônicos, pelas bibliotecas virtuais?

Mas, caso fosse isso, iria tranquilizá-los. Pois de sua parte eles nunca seriam desprezados, tampouco abandonados (pelo menos agora queria que assim o fosse). 

*Tito Damazo é doutor em letras, escritor, membro da Academia Araçatubense de Letras e da UBE.  

Um comentário:

๋•Fєяиαиdσ disse...

E foi meu diretor. Grande exemplo pra mim. Mta saudade dele :D