AGENDA CULTURAL

14.6.11

Desapego e partida


Hélio Consolaro*

Wilma Gottardi
Tenho o privilégio de ter bons amigos. Aliás, ser amigo, às vezes, é muito difícil, precisamos de desapego. Se somos amigos, nem precisamos conversar muito. O silêncio é eloquente.

Quando vejo duas pessoas com aquele pegadio, grude, fico desconfiado. Logo, ambas viram inimigas mortais, porque o apego se norteia por maus sentimentos, como o ciúme.     

O desapego e a partida são processos. Deviam começar justamente no dia em que nascemos, mas nos apegamos a tudo: livros, bichos de estimação, até a mulher e marido. Há gente que se agarra aos filhos, não deixam voar, conhecer o mundo, traçar sozinho o destino.   

Se cada um tiver o desapego a tudo, a preparação para a partida, tudo fica mais fácil. A morte é mais um elemento, devemos pensar nela todos os dias. Não sei se sou desapegado, mas sempre procuro deixar meus documentos em lugares de fácil acesso, porque amanhã...

Muitos praticam o desapego, mas se apegam como náufragos a uma figura transcendental: Deus. Apenas muda o desapego, porque Ele é a busca da eternidade, não queremos acreditar que tudo acaba por aqui, queremos continuar em outra dimensão.  O apego não combina com a finitude. Não sou ateu, sou holístico. Nem quero saber o que sou, o universo deve saber.

Como escrevi, tenho bons amigos. Outro dia recebi um recado no Facebook da artista plástica Wilma Gottardi: “Tenho aqui algumas marionetes. Venha buscá-las. Destine-as a algum grupo”. Lá fui ao antigo Veleiro.

Como Wilma mora no campo, num belo sítio que já foi um clube, demorei alguns dias para decidir. Vou hoje, vou amanhã. E fui, em companhia de Simone e Alcides. E trouxe as marionetes.

Mas antes, tomamos um belo café com sua família. Falou da fragilidade de seu corpo e deixou-se revelar na fortaleza de seu espírito. Doou suas marionetes, compradas em vários pontos do mundo, com muita naturalidade.

- Leve-a, alguém precisa bem mais do que eu.

Doei ao grupo “Deixa que eu conto”. A Tânia Antunes saiu saltitante de minha sala com aquele presente inesperado.

E também a Wilma me passou um mosaico de sua lavra (ver foto), pesado, mas o sacrifício valeu. Ele se encontra numa das paredes da Casa da Cultura “Adelino Brandão” em Araçatuba. Num lugar bem exposto, porque ele é resistente a sol e chuva.
Pintura de Wilma 

- Lá tem o Projeto Guri, o Balé Municipal, muita criança. Leve essa minha arte pra elas – disse-me Wilma.

Conheci a Wilma como minha professora de Ciências no antigo Instituto de Educação na década de 60. Professora dinâmica, fazia feiras de ciências, todos aprendiam fazendo. Desiludiu-se com a burocracia do magistério, despediu o seu patrão, como canta Zeca Baleiro.

Não quero ser apegado a nada, sofre-se demais. Não quero nada pra mim, eu tenho tudo. Sou uma pedra no meio do caminho: fria, indiferente, sem querer atrapalhar a caminhada de ninguém. A minha bondade, paradoxalmente, se traduz em frieza.

O cronista escreve sobre os outros, mas na verdade quer falar de si. Retorne à Wilma, por favor, ególatra. Ela está em processo de desapego. Ela sabe que o trem pode passar a qualquer hora. Ela o espera desde 15 de julho de 1940. O desapego é uma virtude dos santos. Invejo-a.        

 *Hélio Consolaro é professor, jornalista, escritor. Membro da Academia Araçatubense de Letras, da União Brasileira dos Escritores e da Cia. de Blogueiros. Atualmente é secretário municipal da Cultura.

    

                                                                                                                           

Um comentário:

Anônimo disse...

Hoje eu li, hoje eu chorei, não o choro da amargura, mas o choro do amor, do reconhecimento, da cumplicidade do sentimento partilhado. Fui duas vezes feliz, uma quando me desapaguei e doei, outra quando li e vi que você entendeu, eu não quero nada, tenho tudo, tive o reconhecimento e a aceitação que merecia. Obrigada amigo Consa.