AGENDA CULTURAL

24.12.11

Lula e o valor da voz


Alterações na fala podem mexer profundamente com quem enfrenta o câncer de laringe. O que fazer para preservá-la

CRISTIANE SEGATTO - Revista ÉPOCA

CRISTIANE SEGATTORepórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 15 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais de jornalismo. Para falar com ela, o e-mail de contato é: 
cristianes@edglobo.com.br



O ex-presidente Lula não poderia pedir melhor presente de Natal. Sua primeira vitória contra o câncer de laringe é motivo de justa comemoração. Segundo os médicos, a quimioterapia reduziu o tumor em 75%. Um sinal evidente desse encolhimento é a qualidade da voz – atualmente menos rouca que no momento do diagnóstico.
Quem acompanhou pela TV uma declaração de Lula durante um evento esportivo em São Paulo percebeu que ele está falando muito melhor. Parece ansioso para subir num palanque e voltar a fazer o que sabe fazer como poucos.
Foi no gogó e na habilidade de negociação que Lula construiu sua história. Até quem não gosta dele é capaz de admitir que o ex-presidente é um grande comunicador. Comunicar é tornar comum. É expressar emoções e pensamentos. Há várias formas de fazer isso, mas a fala é a principal.
A voz é muito importante para qualquer pessoa. Para alguém como Lula, ela pode ser a razão da existência. Essa é a minha impressão. Desde o diagnóstico do câncer, me pergunto o que uma possível perda ou comprometimento parcial da voz representaria para um líder como ele – sobretudo com a trajetória e o perfil emocional dele.  
Felizmente, neste momento a realização de cirurgia está fora de questão. Se o tratamento continuar dando os bons resultados obtidos até aqui, a voz de Lula estará a salvo. Ainda assim, as sessões de radioterapia previstas para janeiro podem alterá-la um pouco. Para amenizar esse efeito colateral, ele receberá um cuidadoso acompanhamento fonoaudiológico.
A doença de Lula despertou em mim a curiosidade sobre os métodos capazes de restaurar a voz, ainda que parcialmente, em casos de câncer de laringe. Como vivem as pessoas submetidas à extração do órgão? Quem me ajudou a entender foi a fonoaudióloga Elisabete Carrara de Angelis, do Hospital A.C. Camargo, em São Paulo.
Segundo Elisabete, a perda da voz pode ser devastadora para alguns pacientes e não abalar outros demasiadamente. “As referências de qualidade de vida são muito individuais”, diz. “Alguns doentes podem ficar arrasados enquanto outros (em geral aqueles que sempre foram mais quietos) não dão muita importância ao fato. Dizem que estar vivo é o que importa”.
Seja como for, a voz é um importante componente da identidade. Aquilo que a pessoa ouve é, de certa forma, o que ela de fato é. Mudanças na voz podem, portanto, mexer profundamente com o indivíduo. Além, é claro, do impacto profissional e financeiro que a perda ou alteração da voz pode causar. O índice de depressão nesse tipo de câncer é elevado -- afeta cerca de metade dos pacientes.
A doença, quando ainda está bem no início, pode ser tratada com radioterapia ou cirurgia endoscópica com laser. Tumores moderados como o do ex-presidente Lula podem ser debelados com quimioterapia e radioterapia.
Em muitos outros casos, porém, a cura depende da extração da laringe. Sem o órgão, o paciente perde a capacidade de se comunicar pela voz. Por isso é tão importante oferecer alternativas.
A principal é o que os fonoaudiólogos chamam de voz esofágica. Se o ar entrar no esôfago, ele é capaz de produzir som. É algo que as pessoas saudáveis não têm razão para tentar fazer, mas é uma habilidade que pode ser treinada. O paciente aprende a engolir o ar e depois devolvê-lo para produzir o som. “A voz fica mais rouca, mais grossa e limitada quanto ao volume”, diz Elisabete.
Apresentação do Coral do Grupo Sua Voz, formado por pacientes de câncer de laringe do Hospital A.C. Camargo, em São Paulo (Foto: Divulgação)
Quem aprende a usar a voz esofágica consegue ser compreendido num lugar silencioso, mas pode ter dificuldades num ambiente barulhento. Graças a essa técnica, vários pacientes do A.C. Camargo voltam ao trabalho nas funções originais. São médicos, engenheiros, garçons etc.
A segunda alternativa é produzir a voz esofágica com a ajuda de uma válvula implantada cirurgicamente. O ar chega mais facilmente ao esôfago. Dessa forma, o som é produzido com menos esforço. A taxa de sucesso é de 80%, mas há um inconveniente (a válvula precisa ser trocada a cada seis meses) e uma grande dificuldade (custa cerca de R$ 1,3 mil e não é oferecida pelo SUS).
A terceira opção é a laringe eletrônica, também chamada de vibrador laríngeo. Ele produz um som contínuo (algo como um “brummmm”) e transmite uma voz metálica. É uma voz robotizada, incapaz de expressar emoções.
“Em nenhum lugar do mundo existe uma opção ideal. Infelizmente não temos uma voz barata, rápida e fácil de aprender”, diz Elisabete. “Mas o objetivo da reabilitação não é dar ao paciente uma voz bonita. O primeiro objetivo é a comunicação.”
Nenhuma técnica ou dispositivo se aproxima do instrumento que a natureza criou. Para dar um simples “bom dia” ou cantarolar no chuveiro, colocamos em ação uma maquinaria genial. O ar sai dos pulmões, passa pelas cordas vocais para fazê-las vibrar e o milagre do som acontecer. Não nos damos conta do valor da voz natural, mas quem a perdeu comemora cada pequeno progresso.
Esse é o espírito do Grupo Sua Voz, coordenado por Elisabete no A. C. Camargo. Na quarta-feira 14, a apresentação do coral formado por dez pacientes que tiveram câncer de laringe emocionou quem parou para assistir. Todos os participantes perderam a laringe para o câncer e usam estratégias alternativas para se comunicar. E, até mesmo, cantar.
“Usamos o canto como exercício vocal e como forma de expressar emoções, mas as reuniões permitem uma troca de experiências muito rica. A autoestima dos pacientes melhora porque eles percebem um sentido de aceitação profunda ao ouvir histórias melhores e piores que as deles”, diz Elisabete.
Tão importante quanto curar é zelar pela qualidade de vida. Por isso, iniciativas como a de Elisabete precisam ser conhecidas e reproduzidas. Felizmente, a instituição que atende tanto planos de saúde e pacientes particulares quanto o SUS consegue curar 65% dos doentes de câncer de laringe. Esse é o resultado de um levantamento que revela o perfil das pessoas que chegaram à instituição para esse tipo de tratamento. Entre 2000 e 2006, foram tratados 361 pacientes.
A maioria tinha entre 50 e 70 anos e era do sexo masculino (307). “Os homens fumam mais e se expõem mais ao álcool que as mulheres”, diz Luiz Paulo Kowalski, diretor do departamento de Cabeça e Pescoço do A.C. Camargo.“São dois importantes fatores de risco, mas o cigarro é o pior de todos”, diz.
Do total de pacientes, 226 estão vivos. O índice de cura desse tipo de câncer na instituição é de cerca de 65%, semelhante ao verificado nos EUA. Se o diagnóstico fosse feito precocemente, mais gente poderia ser salva e sofreria menos sequelas do tratamento. Somente 138 casos foram diagnosticados nos estágios bem iniciais (chamados de estadios 0 e 1) .
As dificuldades de acesso ao sistema de saúde explicam o problema apenas em parte. Muitos brasileiros negligenciam os cuidados com a própria saúde mesmo quando dispõem de convênios ou podem pagar consultas particulares. O ex-presidente Lula resistiu a fazer os exames quando os primeiros sintomas apareceram, mas foi convencido a não postergar a avaliação. Foi surpreendido por um tumor em estágio moderado (entre os estadios 2 e 3). Por sorte, a tempo de ser tratado sem perda da laringe.
Que a história de Lula e o exemplo do coral do A. C. Camargo nos estimulem a cuidar da voz. Essa voz natural maltratada, esquecida e tão eficiente quanto inimitável.
(Cristiane Segatto escreve às sextas-feiras no site da revista Época .)   

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