AGENDA CULTURAL

16.3.12

Graciosa Madalena

Romindo Sant'Anna - Revista Domínio



Jazia sob um altar, em manta de cetim, dormida num caixãozinho de vidro. Era certo que, tendo sobrevivido por milagre, fora enterrada viva.


N ossa mãe e suas histórias. No cuidado de manter aceso o lenho do fogão, alentava-nos dalgum mistério da vida. Assim, se seguiram diário em nossa casa contos como as de Santa Maria Goretti. Órfã de pai, cuidava dos irmãos menores. Certa vez, estando a mãe em lida na roça, se lhe acercou um vil grosseiro em palavras e obsceno em desejos. Ante a recusa da menina, traspassa-lhe o peito com o punhal. Em sangue, balbucia o perdão ao malfeitor. Encolhíamo-nos em gesto de horror. Certo dia, com a história latejante na cabeça, quis ver a santa em figura. Era pior do que nossa mãe nos narrava. Jazia sob um altar, em manta de cetim, dormida num caixãozinho de vidro. Era certo que, tendo sobrevivido por milagre, fora enterrada viva. Guardei em secreto o mais sufocante dos meus medos. E, toda vez, pedia à mãe que nos contasse outra história: a graciosa Madalena.
Sou camarada vivido, misturado em palavras. Entrevejo nossa mãe em meio à fumaça, buscando os fios que nos enredavam em histórias. Madalena, a pecadora. Perguntei de seu pecado. Desconcertada, explicou-me com um enigma: luxúria. Fiz sinal de entendimento. Em casa o que nunca houvera foi luxo (que nem na casa da Goretti). E mesmo que fôramos "luxuosos", haveria sempre a provocação do Messias: atira a primeira pedra! Essa era minha cena predileta: o desafio à tomada de consciência e a deposição de todas as armas. Amortecidas as fúrias, Madalena se alevanta alumbrada, plena, e beija um homem, de fato, por primeira vez.
Pecadora? Não. Imagem difusa em nosso espelho. Eia, Musa dos quatro evangelhos, dos quatro cantos do planeta, nos quatro elementos da natureza. Maria dos quatro mares, donzela dos quatro costados, das quatro fases da lua, dos quatro pontos cardeais. Sombra do pecado em toda gente, pendurado nas quatro hastes da cruz. Certo dia, vindo a saber que Jesus visitava um fariseu, eis que adentra na sala a libertina dama da cidade. Quebrando as normas da casa, lentamente se aproxima. Traz num frasco o mais fino dos perfumes. Em silêncio, banha os pés do convidado e, afagando-os no rosto, enxuga-os com os cabelos. Após, na surpresa em que viera, afasta-se delicadamente.
Pecadora? A mulher subiu em aflição a pirambeira do calvário e ajoelhou-se ante o palco da tragédia. Eia, noiva morena dos injustiçados, enfermeira dos impuros, guardadora dos sepulcros e das ressurreições. Enlutada, aportou nalgum lugar, cheia de graça, iluminada por dentro. Os feitiços da existência engendraram seus encantos de contos por contar, de um fogão em lume a aquecer os corações. Para que houvesse a sagração dum destino: ser um contador de histórias (mesmo que mal enjambrado), e partilhá-las consigo, amável leitor.

Um comentário:

Romildo Sant'Anna disse...

Sinto-me honrado pela publicação. Grande abraço, amigo