(Carlos Rodrigues Brandão – Cadernos SESC de
Cidadania)
HÁ MUITOS SÉCULOS, HERÓDOTO ESCREVEU
QUE AO CONTRÁRIO DE outros povos, que viajavam para comerciar, para se
refugiar, para colonizar, para conquistar, os gregos viajavam para comerciar e
conhecer. Ele mesmo terá sido um bom exemplo desse costume, pois a partir de
suas viagens de outros povos, tornou-se um fundador da ciência da História.
Talvez, no melhor sentido da palavra, tenha sido também um primeiro turista.
Alguns poucos anos atrás, o poeta
palestino Mahmud Darwix escreveu em um de seus longos poemas: “O lugar são os
sentimentos”.
Poucos meses atrás, em um criativo
cartão postal criado pelo SESC Consolação para o Encontro das Américas de Turismo
Social, estava escrito no verso da imagem o seguinte: “Viajar é ler o mundo
pelos olhos do Eu e do Outro”. Terão os autores (ou autoras, imagino) da feliz
frase lido o “Eu e Tu”, de Martin Buber? A sentença tem um pleno sentido, pois
o subtítulo do Encontro é: por uma visão humanista e social do turismo nas
Américas.
Se reunirmos as três imagens com
algumas palavras que trago aqui, poderemos encontrar um fundamento múltiplo
para a ideia de turismo social. Algo que poderia também chamar-se “partir em
busca do outro”. De um lado a ideia de que viajamos não apenas para ver (e hoje
fotografar exageradamente), mas para perceber. E não apenas para perceber, mas
para compreender. Compreender o outro através de mim mesmo; compreender a mim
mesmo através do outro. Compreender a vida e seus mistérios através do mais
essencial encontro humano: a partilha do diálogo com um outro. A criação do
mais pleno mistério do humano: o entre nós.
De outro lado, a imagem de que o lugar
onde estamos – de nossa casa a um país distante – nunca se revela a nós em sua
objetividade absoluta. Vemos, percebemos e compreendemos a partir e no interior
de nossos sentimentos. Estamos onde sentimos estar. E viajar é nos deixar levar
e aos nossos sentimentos (afetos, emoções, etc.) a um outro lugar no tempo. Mas
é também nos levarmos por nossos sentimentos, e nos levarmos a sentir o “aqui
onde estamos” desde o como sentimos o lugar a que e a quem chegamos.
De outro lado, ainda, podemos sentir
que viajar, partir, fazer turismo, é dispor-se a sair de si mesmo e abrir-se a
estar-com-o-outro. É aprender a sentir o seu mundo através dele mesmo, tal como
“ele-mesmo” se dá a ver, a sentir e compreender em nós e através de nós. Toda
relação de viagem-turismo completa e humana é um ir a um lugar para vivenciar a
face humana desse lugar. É preciso uma visão bastante estreita para partir em
busca de coisas, de “emoções” (tome adrenalina!), de apenas paisagens, vazias
da presença interativa de e com outras pessoas. De outras gentes, que dão
nomes, sentidos e imagens a qualquer lugar. De outras culturas (da comida
típica às orações em um templo) que outras pessoas “que não são como eu” (sendo
tão pessoalmente humanas quanto eu) criam e recriam para viverem vidas e modos
de vida em busca dos quais um turismo humanizado sai em viagem.
Num capítulo não por acaso intitulado
turistas e vagabundos, de um dos seus vários livros traduzidos para o
português, “O mal-estar da pós-modernidade”, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman
lembra do vulgar que pode existir na prática de um turismo-do-vazio. Ele começa
dizendo isto:
A
identidade durável e bem costurada já é uma vantagem; crescentemente, e de
maneira cada vez mais clara, ela se torna uma responsabilidade. O eixo da
estratégia de vida pós-moderna não é fazer a identidade deter-se – mas evitar
que se fixe.” Afigura do turista é a epítome dessa evitação. De fato, os
turistas que valem o que comem são os mestres supremos da arte de misturar os
sólidos e desprender o fixo. Antes e acima de tudo, eles realizam a façanha de
não pertencer ao lugar que estão visitando: é deles o milagre de estar dentro e
fora do lugar ao mesmo tempo. O turista guarda a sua distância e veda a
distância de se reduzir à proximidade.
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Capa do caderno SESC |
Em um mundo pós-moderno em que tudo
se liquefaz, e em que de latas de
cerveja a laptops superados e a pessoas postas “à margem”, tudo é descartável,
incluindo o turismo de massa, aquele que lastimavelmente cresce e prolifera
dentro de uma perversa lógica dos ganhos do mercado – eu viajo para viver
intensamente aquilo que logo depois será esquecido e “superado” pelo desejo
(sempre insatisfeito) de uma próxima viagem. Os melhores exemplos disso talvez
sejam as viagens de cruzeiro. Aquelas em que os “prazeres de bordo” de um navio
inigualável são mais anunciados do que os próprios lugares a que o maravilhoso
transatlântico levará os “felizes passageiros”. Em uma viagem-de-finge durante
a qual tudo se vive às pressas, tudo se compra e vende, tudo se repete. Porque,
afinal, no fim das contas e da viagem, o que se descobre é que o navio fabuloso
não passa de um imenso ‘shopping flutuante”, não muito diferente dos de minha
cidade. E a viagem fabulosa apenas torna um exercício ostentatório aquilo que
eu poderia viver com mais calma e menos gastos sem sair de “onde eu vivo”.
Voltemos uma outra vez ainda a Bauman.
Na vida do turista, a duração da estada em qualquer lugar mal chega a
ser planejada com antecipação; tampouco o é o próximo destino. A peculiaridade
da vida turística é estar em movimento, não chegar. Ao contrário daqueles seus
antecessores, os peregrinos, as sucessivas escalas dos turistas não são as
estações pelo caminho, uma vez que não há objetivo que lhes acene, no fim das
viagens da vida, que pudesse convertê-los em estações.
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Carlos Rodrigues Brandão |
Imagino que aquilo a que damos o
nome de turismo social, quando pensamos em uma vocação de “humanização do
turismo”, seja o exato oposto desta sentença.
Quando penso formas e modos de se
fazer turismo, entrevejo uma primeira dimensão. Quero chamá-la aqui de
turismo-coisa. É aquele que leva “quem vai lá” a uma busca superficial nem
sequer de lugares de cultura (como Ouro Preto) ou de natureza (como as
Cataratas do Iguaçu), mas em busca de produtos prontos que se “vive” (como uma
roda gigante na Disneylândia ou algum dos seus passeios temáticos artificiais e
repititivos) ou que se compra. Ah! Supremo prazer que há em “ir até lá” com
duas malas e “voltar de lá” com quatro, duas delas cheias de “compras”! em
geral de bugigangas, como os imensos “sombreros” mexicanos que no mês seguinte
já não sabe mais onde esconder dentro do apartamento.
Entrevejo uma segunda dimensão no
que quero chamar aqui de turismo-corpo. Não importa então o lugar onde estou,
e, menos ainda, quem “está lá” (ou “aqui”). Importam as experiências – se
possível, “radicais” – que eu vivo, como os desafios programados para as
ousadias do corpo em falso-perigo, que deverão ser exaustivamente fotografados,
exibidos por uma semana e esquecidos logo depois.
Mas a seguir entrevejo uma terceira
alternativa. Devo chamá-la turismo-cenário. Agora sim, parto em busca de outro
lugar, a outra paisagem – seja a da cultura, seja a da natureza, seja, como
deveria acontecer no mais das vezes, a interação entre cenários naturais e os
da cultura. Quero “ir lá” para ver, para conhecer (e hoje para fotografar
repetidamente) não coisas pré- fabricadas de se ver e possuir, e nem as proezas
aventurosas dos programas-adrenalina, mas aquilo que um mundo-outro tem a me
apresentar. A velha tradição que vai do escotismo (os melhores turistas, a meu
ver), ao excursionismo do passado (ancestrais do “trilheiros” de hoje) poderia
ser um exemplo extremo, mas feliz e fecundo, desta escolha.
Vem a seguir uma quarta escolha. E
ela poderia receber este nome: turismo-do-outro. Ela será, imagino, o
fundamento do turismo social. Ela existe quando aquilo em busca do que me faz
ir “até lá”, incorpora e integra a pessoa do outro, sua presença, sua vez e sua
voz. Uma paisagem duplamente bela e atraente porque vista a vivida através das
“pessoas do lugar”. E não como falsos “atores locais” de um turismo que
transforma o outro de pessoa em personagem. E que torna a sua própria cultura uma
vulgar e encenativa “cultura típica”.
Uma prática de turismo não
passa de “massa” a “social” apenas
quando ela recebe alguns ingredientes a mais de densidade de “cultura local”,
através da incorporação de pessoas e cenários de “vida local” no pacote
turístico. Este seria apenas um primeiro
passo.
Num segundo passo – difícil passo a
ser dado – o turismo social passa a “solidário”, quando eu parto em busca do
“lugar que não é como o meu”, e de culturas que não são “a minha”, e pessoas
que são... e não são como eu, para viver entre elas a experiência humana mais
surpreendentemente radical: ir ao encontro da pessoa do outro como o motivo
mais essencial do “sair, ir lá e estar aqui”. Ou, dito de outra forma: o me ver
e compreender a mim mesmo quando refletido no brilho no brilho do olhar de um outro.
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