Caneca retorcida

Hélio Consolaro*

Comprei uma caneca com inscrição, aquela coisa brega: “Estive em Fortaleza e me lembrei  de você”, “Quem cedo madruga, Deus ajuda”.Há um comércio que sobrevive disso, num momento a caneca cai-lhe na  cabeça, assalta-lhe o bolso, como  ocorreu comigo.

Uma caneca toda torta, retorcida, com a inscrição:  “Eu assumo meus defeitos”. Era uma das últimas do estoque, porque a frase tem uma amplitude filosófica,  portanto, nem todos têm  essa maturidade de dizer “eu assumo meus defeitos”.

Meu pai mesmo morreu com  mais de 80 anos, mas sempre dizendo: “eu não erro”. Para ele, as coisas não  davam certo  por causa dos outros. Isso prova que nem  sempre  a  velhice é sinal  de sabedoria.

Como escreveu Rubem Alves, há gente que  é  piruá até  o fim da vida (grão de milho pipoca que não rebenta, por mais que o  fogo esquente a  panela). Há pessoas que ao  passar dificuldades na vida, mudam totalmente suas atitudes, o seu jeito de ver  o  mundo. O fogo na panela é o curar-se de uma doença incurável, salvar-se de uma  acidente. Os milagres acontecem, basta lê-los.

Eu, aos 25 anos, fui preso pelos militares no  Doi-Codi, me ameaçaram  de que eu ia virar presunto,  etc. Saí de lá salvo, a minha arrogância, prepotência, orgulho ficaram  na cela. Não voltaram para a minha sacola. Não tive  vocação  para  ser piruá. Aliás, estou vivo por teimosia, Deus tinha algo reservado para mim, pois ao nascer por fórceps, o médico perguntou ao  meu avô, pois o pai rapazinho apenas chorava:

- Você quer salvar a criança ou a mãe?

Meu avô optou pela mãe, e o médico salvou os dois. Para alegria de alguns e desespero de muitos, estou aqui sessentão, ainda incomodando.

Não sou santo, nem perfeito, nem sei que estou fazendo por aqui, mas quando vejo arrogância, prepotência, tudo misturado com orgulho numa só pessoa, como se ela  fosse o rei ou a rainha, fico com pena. Essa pessoa ainda não saboreou o bom vinho da vida, está jogando a melhor parte  no  lixo.

Aqui  está minha caneca torta,  retorcida, mas  a  frase está incompleta. Devia  ser assim: “Eu assumo  e amo meus defeitos, porque por  eles me diferencio  dos  outros”.  Na verdade, essa carga negativa da palavra “defeitos” não podia existir, é como classificar injustamente certos animais de “nocivos”.

Existe a diferença, não gostamos daquilo que é diferente de nós. Ou, então, somos unilaterais: na natureza, tudo tem uma função, faz parte do ecossistema, portanto  dizer que há animais nocivos é  antropocentrismo  exagerado.

Minha alma retorcida, colher torta de minhas opiniões, a cegueira de meus sentimentos, por  onde passo  deixo  o rastro de  meus defeitos. Eles são incorrigíveis, são componentes da identidade. Só a minha voz de dentro  consegue tecer a minha divindade.

Hélio Consolaro  é professor, jornalista, escritor. Atualmente é secretário municipal de Cultura de Araçatuba-SP