REVISTA DA CULTURA - LIVRARIA CULTURA
“Moço,
não me leve a mal, mas você já pode ir preenchendo o boleto?” Eu
estava de táxi, em direção ao M’Boi Mirim. Não havia 10 minutos que
tinha entrado no carro e o motorista já havia comentado pelo menos três
vezes sobre sua preocupação com o nosso destino. Na real, o bar do Zé
Batidão fica no Jardim Guarujá, bairro no extremo sul de São Paulo,
como me explicou o escritor e poeta Sérgio Vaz. Mas o caminho é pegar a
Marginal Pinheiros sentido Santo Amaro, passar a João Dias, ficar na
direita e pegar a Guido Caloi até virar Av. Guarapiranga e, quando esta
se tornar a Estrada do M’Boi Mirim, entrar à direita. Longe. O Sérgio
contou também que, nas décadas de 1980 e 1990, aquela área foi
considerada uma das mais violentas do mundo. O taxista revelou que seu
trauma veio de quando foi levar um passageiro a essa região e viu um
cara descarregar uma arma em outro. E é ali onde, hoje em dia, acontece
toda quarta-feira, na Rua Bartolomeu dos Santos, 797, o Sarau da
Cooperifa. É praticamente a casa de Sérgio, fundador desse espaço de
poesia, música e literatura.
Quando
se fala em espaço, extrapolamos o conceito de local físico. “Ué, você
não é mundanista?” Corta a cena para Pinheiros, região nobre de São
Paulo. A moça queria saber se eu também não escrevia para o blog
colaborativo MundoMundano. Foi com a ideia de ter um local para seus
poemas e poesias que nasceu o Sarau Mundano, encabeçado por Mariana
Portela, de 28 anos, e Camila Briganti, de 34, psicóloga e advogada
respectivamente. “Cansamos dessa vida de escritório, sala e computador.
Se desse, a gente virava hippie”, conta Mariana, que trabalha no RH de
uma empresa. Camila é advogada há 10 anos, mas deixou o escritório em
que trabalhava para cuidar do MundoMundano. Sim, é o nome do blog, mas
também é o restaurante, bar e palco das apresentações e recitações
desse sarau.
Histórias do mundo
O
cheiro é de vinho e de perfumes doces. O Sarau Mundano acontece na
Mourato Coelho, 25. Bastante gente de 40 a 60 anos e jovens que fumam
do lado de fora visitam o sarau. O espaço térreo não comporta tantos e
muitos ficam na calçada. Ali, literatura, poesia e música são tratadas
com reverência. Quando fui até lá, eles estavam a dois dias de
completar um mês naquele espaço, tudo novo, para todos. Mariana conta
que o principal motivo para o sarau acontecer é aquele ser um lugar
para que as pessoas se encontrem, seja com os amigos e conhecidos, seja
consigo mesmas.
Lembro-me
do primeiro sarau ao qual fui: tinha 18 anos e teve pouca poesia e
muita música. Os outros nunca me animaram tanto como aquele, talvez
pela época mágica da idade, talvez pela perda do interesse em poesia e a
fascinação pela prosa e por jornalismo literário. Desaprendi de ouvir
histórias em versos. No Mundano, me senti de fato a trabalho e recusei o
vinho e a cerveja oferecidos diversas vezes pelas patronas do espaço,
educadíssimas e extremamente atenciosas. Sentei-me ao lado de um grupo
de amigos da mãe de Mariana, Miriam Portela, também jornalista e uma
das personagens do sarau. Não apenas por essa matéria, mas pela
homenagem que recebeu de uma intérprete que cantou uma música para ela,
outra pessoa que leu um de seus poemas e por sua figura carismática.
Ali, com os mais velhos do que eu, me senti mais à vontade.
Do outro lado da cidade
A
ida ao Sarau da Cooperifa obviamente foi diferente, por desconhecer o
bairro, saber de sua fama e pelas preocupações que vêm com os
estereótipos carregados por alguém de classe média como eu. Cheguei
atrasado, as rimas rolando uma atrás da outra, sem tempo de eu respirar
e entender quem passava e quem recebia o microfone. Sentei-me na
escada lateral do bar Zé Batidão, alguns degraus abaixo de um cara com
um casaco da Jamaica. Fazia frio e percebi que algumas pessoas saíam da
área do balcão carregando um copo plástico de 300 ml com um líquido
amarelo e licoroso dentro, além de um palito de sorvete. Antes de pegar a
minha própria bebida, consegui assistir à apresentações simplesmente
fantásticas da Cooperifa. A Gostosinha, nome dado por seu Zé à mistura
de vodca, pinga e mel, ajudou a entrar no beat que vinha do microfone.
A
poesia flui, a galera ali tem ritmo, muitos com cadência do rap
(lembre-se: rap = rhythm and poetry, “ritmo e poesia”). Helber Ladislau
Araújo é um deles [você confere a poesia recitada por ele nesse dia ao
final da matéria]. Acompanhado de uma gaita que faz uma linha de
blues, Helber declama sua poesia, mas interpreta-a também. Ali, são
todos artistas. A emoção é forte na garganta de cada um, não há espaço
para o blasé.
“Não
tenho a ilusão de formar poetas. Eu seria ingênuo se afirmasse isso”,
conta Sérgio Vaz. “Mas sei, e tenho certeza disso, que estamos formando
leitores. Pessoas que conhecem a rima, têm seu material e trazem aqui
para apresentar. Essa já foi uma das regiões mais perigosas do mundo.
Comecei há 11 anos com o sarau lá no Taboão, hoje são mais de 60 na
cidade de São Paulo. E pode vir quem quiser falar aqui, do bairro que
for, pobre ou rico. Só não pode fazer discurso retórico e política.
Quer falar de política, faz uma poesia e traz pra gente. Pra mim, um
microfone no meio da comunidade é tudo o que preciso.”
Quando
questionado sobre o apoio de alguma instituição governamental ou
privada, Sérgio não titubeia: “Apoio do governo tem para uma iniciativa
ou outra, pontual. Não temos ajuda de ninguém, mas também nunca
procurei. Não vieram, também não fui atrás, tá tranquilo. Essa é a
nossa Primavera de Praga, está acontecendo do nosso jeito, no nosso
tempo. A revolução cultural que a classe média viveu nos anos 1960 e
1970 é o que a gente vive hoje, com o nosso cinema, a nossa poesia, o
nosso teatro, a nossa dança. Surgiu do povo e vai continuar com o povo,
sem ninguém precisar assumir, porque já é nosso”.
O
escritor também dá exemplos de diferentes formas de angariar a ajuda
de pessoas da comunidade e promover variadas formas de expressão em
seus saraus. “Temos o Joelhaço, no Dia Internacional da Mulher, quando
os caras da comunidade pedem perdão de joelho às mulheres pelas coisas
que fazem. Em abril, fizemos a Poesia no Ar, soltando dezenas de bexigas
cheias de gás hélio com um poema amarrado no cordão. Juntamos mais de
500 pessoas. Vou ficar pedindo dinheiro pro governo pra eu comprar
bexiga? Não, né. Gente de ONG não me curte muito, sou meio avesso, mas
não porque eu ache ruim, só que não quero. A gente tem apoio, sim, de
nomes como Itaú Cultural, Sesc, Trip, Companhia Das Letras e Global
Editora. A Chuva de Livros, por exemplo, conta mais de 500 livros
doados, novinhos, pelo Luiz Schwarcz, da Companhia Das Letras”, diz. E
ainda revela: “São bem-vindas as parcerias, mas não quero que dependa
de ninguém pra acontecer, a não ser da gente. Nem o crime, nem a
polícia me perturbam. E não porque eu sou o chefão aqui. Não mando em
nada. Se você acha que está seguro fazendo a matéria só porque está
comigo, se engana. Eu também posso ser assaltado, oras! O fato é: isso
nunca aconteceu com ninguém da Cooperifa. Mas faço a minha parte: deu
23h, mando parar tudo. Tem que respeitar o bairro”.
Coisa do passado
Marcelo
Yuka, músico e escritor, fundador do grupo O Rappa e um dos principais
agitadores culturais do Rio de Janeiro, afirma que é totalmente errado
dizer que os saraus estão voltando com força total: “Falar sobre a
volta dos saraus é igual falar sobre a volta do samba, cara. Não existe
isso de voltar, justamente porque não foi embora”.
Ferréz,
escritor do que é chamado de “literatura marginal”, concorda. Ele é
responsável pelo Sarau da Vila Fundão e pelo EnsaiAço, esse último de
hip hop – ambos acontecem no Capão Redondo. “Esse é um fenômeno que
existe no Brasil há mais de dez anos. Claro, de cinco anos para cá,
ficou mais latente, mas não deixou de existir. É o elo da corrente, de
você ir num lugar, ouvir, curtir e levar para onde você mora”, conta.
“A fórmula é simples, por isso dá certo: som, microfone e bar. As
pessoas se conscientizaram de que a literatura tem de ser aberta, que
também é pegar o microfone e falar, poder voltar pra casa e trabalhar
melhor no texto. E também é possível escrever enquanto tomam uma
cerveja, oras. E, na semana seguinte, ela quer mais, volta porque quer
mais aplauso, e vai melhorar. É uma oficina comunitária. Em um mês, por
exemplo, tem um texto bem feito e lapidado. Ele fica com um final
melhor, recebe o palpite ali na mesa, as pessoas te ouvindo e sendo o
seu termômetro na hora.”
Sobre
o poder público, Ferréz desconhece qualquer sarau que receba ajuda
governamental. “Não conheço um sequer. Mas não digo que é um interesse
nosso... nem desinteresse. Só estou preocupado em fazer, por isso, não
gastei tempo procurando ninguém”, revela.
Cadê os clichês?
Se
olhado pelo paradigma que separa a classe média da periferia, o
movimento de saraus pode induzir a uma visão romântica que divide os
que fazem poesia falando errado com denúncias da nossa sociedade dos
que tomam vinho enquanto recitam sonetos de amor. Porém, Mariana
explica: “O conceito do Sarau Mundano é muito alinhado com o do
MundoMundano: a interação entre as diversas classes sociais e entre as
inúmeras formas de manifestações artísticas. Temos a coexistência de
pessoas ‘ricas’ e ex-presidiários, por exemplo, ocupando o mesmo
espaço, sem distinção de raças, orientações sexuais ou nível social”.
Para
ela, os saraus tornaram-se genuinamente autorais, colocando as pessoas
participantes como protagonistas de suas letras, músicas,
performances, fotografias etc. “Entendo que o encorajamento de ser
autor só existe com um grande repertório de leitura. Muitas pessoas
vieram me dizer que foram buscar referenciais, depois do primeiro
sarau, para se aperfeiçoarem na segunda apresentação.” E arremata: “A
arte não distingue a ferramenta humana pela qual irá se manifestar”.
Antônio*
Por Helber Ladislau Araújo
Antônio saiu do trampo, louco para ver seu filho,
A dez metros de casa ele leva um tiro.
No momento em que ele viu com os olhos arregalados o dedo indicativo se movendo
Pá!
Não deu tempo de sentir medo.
A bala já queimava em seu peito.
Primeiro atiraram depois conferiram seus documentos.
Na carteira a foto de um recém-nascido junto à certidão de nascimento
O barulho do disparo da cabeça de seu João não sai mais.
Ele que era o avô, passa a ser pai
E sofre todas as vezes que o netinho pergunta
Vovô, onde está meu pai?
Quando se perde o raciocínio nada lhe vale a razão.
É o segundo filho morto de forma violenta que perde seu João.
O Seu João é aposentado,
Ele passa a tarde sentado na calçada olhando para o infinito
Como se lá no céu ele enxergasse seus dois filhos.
Mas não, o que ele vê é o mosquito de aço
Tututututututututututu
Que balança o madeirite, que faz voar as telhas do barraco
Aos pés do morro
crianças com os olhos arregalados presenciam os vaga-lumes avermelhados
Tá pá pá pá pá
A polícia em busca de paz, mas comandada pelo diabo
Os corações ficam despedaçados
Dona Maria não senta mais em frente ao seu barraco
Não tem mais samba no bar do seu Geraldo.
A população é o maior exército, mas permanece inerte
E pelas frestas relata os fatos
A burguesia que hoje tem o sorriso desfeito pela insegurança
Porque a grana já não garante segurança.
A cidade se transformou em uma guerra de batalha antes ocultada
A formação de uma má educação e uma saúde precária
É o reflexo de uma classe social ignorada
O sangue do morro escorrendo na calçada
O mesmo sangue que já escorria na senzala
E são os mesmos vampiros sugando e dando risada.
*Poema recitado durante um dos saraus da Cooperifa
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