Revista do Sescsp - maio de 2013
Desde meados do século 20, com o desenvolvimento das tecnologias digitais, a convergência do computador e das telecomunicações e as interfaces do homem com a máquina, houve o surgimento de paradigmas teóricos para explicar os fenômenos que decorrem dessas novas relações. O termo pós-humano, por exemplo, tenta dar conta das mutações que as tecnologias estão provocando no corpo, assim como suas implicações antropológicas e filosóficas. O pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (CBPF-MCTI) Henrique Lins de Barros e o professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp) Oswaldo Giacoia Junior analisam essa questão.
NÓS E O MEDO DO DOMÍNIO DAS MÁQUINAS
Por Henrique Lins de Barros
As máquinas são uma invenção humana. Não conhecemos nenhum outro animal que tenha se aventurado na construção de um aparato capaz de transformar a força e amplificá-la como faz uma máquina, mesmo a mais simples. Conhecemos alguns exemplos de animais que utilizam ferramentas rudimentares. É o caso, por exemplo, de alguns primatas, como os chimpanzés, que usam pesadas pedras para quebrar cocos e extrair alimento ou buscam longos gravetos para retirar a sua refeição que se esconde numa cavidade. Também podem usar essas ferramentas rudimentares para se defender ou atacar. Nossos ancestrais distantes, os primeiros hominídeos, utilizaram ferramentas ou pequenas máquinas há mais de dois milhões de anos. Eles descobriram que era possível utilizar material encontrado e transformá-lo, fazendo um novo uso.
Assim, surgiram pequenos objetos que podiam produzir fogo, lanças que facilitavam a caça, facas que cortavam a carne, mudando a alimentação de forma drástica. Entretanto, não inventaram máquinas como nós entendemos hoje, pois elas são dispositivos que dependem de uma fonte de energia, são constituídas por mais de um elemento e têm a finalidade de executar uma tarefa para a qual foram idealizadas. A história que conhecemos nos diz que Arquimedes (Siracusa, 287 a.C.-212 a.C.) pensou e construiu dispositivos capazes de utilizar energia para executar determinada tarefa. As máquinas arquimedianas revolucionaram a técnica: polias, alavancas, cunhas, parafusos... permitiram realizar tarefas até então impossíveis de serem realizadas pela força humana. “Deem um ponto de apoio e moverei a Terra”, segundo a lenda, teria sido a frase dita por Arquimedes para mostrar a capacidade de levantar pesos com uma alavanca. Só faltava o ponto de apoio.
“Existem, de fato, máquinas que são capazes de identificar um problema e se autocorrigirem, ou mesmo aprimorar o seu funcionamento, mas são incapazes de imaginar algo novo.”
A máquina é um aparato mais sofisticado do que uma ferramenta. Serve, sem dúvida, para facilitar: guindastes são capazes de levantar grandes massas, motores permitem realizar deslocamentos sem esforço físico.
O século 20 viu nascer uma grande variedade de máquinas, graças aos avanços científicos obtidos ainda no século anterior. A compreensão dos processos termodinâmicos possibilitou desenvolver motores a vapor e a combustão interna, permitindo que se chegasse até o domínio do voo controlado. A invenção das lâmpadas permitiu uma nova relação com a noite. Os estudos envolvendo fenômenos elétricos colocaram no mercado motores silenciosos, mudaram as comunicações com telefones, telégrafos e televisões. Os satélites, lançados por foguetes que são capazes de sair da atmosfera terrestre, fizeram com que fosse possível interagir com outros continentes num intervalo de tempo ínfimo. Com os celulares as pessoas vivem a ilusão de não estarem a sós. As máquinas alteram a nossa relação com o mundo real, expandem nossa capacidade de atuação e abrem um novo campo de reflexão ao permitir que se consiga visualizar aspectos de um fenômeno que dependem de um grande esforço de cálculo.
Uma das mais impressionantes contribuições que as máquinas eletrônicas deram foi possibilitar realizar cálculos de tamanha complexidade que sem elas seria impossível. Os computadores, assim que surgiram, foram chamados de cérebros eletrônicos, nome impróprio, pois eles não realizam um raciocínio. Os computadores, ou ordinateurs (ordenadores), como os franceses usam, são máquinas capazes de tratar automaticamente vários tipos de informação e com isso apresentar um resultado que não seria possível obter sem o seu auxílio. Com eles é possível realizar estudos complexos em diversas áreas. Na área científica eles abriram um campo novo: passou a ser possível fazer cálculos e obter informação sobre propriedades de átomos ou moléculas e ‘projetar’ um novo material ou um novo medicamento. No campo da informação os computadores mudaram a vida de cada indivíduo, lançando as novidades cada vez mais rapidamente. Na biomédica eles são capazes de analisar com rapidez o resultado de exames e propor tratamentos. São capazes de estudar como as células se comunicam e de fazer previsões que dependem de cálculos repetidos um grande número de vezes. A capacidade dos computadores de grande porte tornou possível criar simulações e se ter uma previsão meteorológica com certa confiabilidade.
O século 20 vai passar para a história como o século da descoberta do voo controlado, assim como o século 16 ficou conhecido como o das Grandes Navegações. A revolução que o avião produziu é impressionante: passou a ser possível fazer deslocamento em curto espaço de tempo. Pessoas podem viajar, produtos perecíveis podem ser comercializados.
Em resumo: as máquinas ampliaram o horizonte do homem, assim como, em tempos pré-históricos, as ferramentas possibilitaram aos hominídeos se desenvolver com a dieta de proteínas devido à caça mais eficiente. Mas não há possibilidade de máquinas criarem obras de arte, como a Nona Sinfonia de Beethoven: O Freunde, nicht diese Töne! (Ó, amigos, mudemos o tom!).
Muitas vezes não percebemos o que ocorre por trás de um equipamento. Vivemos hoje diante do medo. As informações que chegam a nós mostram que a Terra está sofrendo os efeitos da atuação humana. A produção de gases de efeito estufa, provocando uma tendência de aquecimento global, é produto de máquinas que utilizam carvão mineral ou derivados de petróleo. Mesmo soluções mais limpas causam mudanças ambientais inevitáveis. Grandes áreas são necessárias para as hidrelétricas, para as usinas termonucleares, ou para as usinas eólicas ou solares. Além disso, os componentes de máquinas têm que ser fabricados. Como exemplo, para fazer uma pequena conexão USB, que são produzidas aos milhões, e igualmente descartadas, utiliza-se algo como 150 litros de água; para produzir um quilo de alumínio, 100 mil litros de água são necessários; um automóvel, 400 mil litros.
Máquinas são mais eficientes que operários, mas são extremamente especializadas. Não são capazes de pensar. Existem, de fato, máquinas que são capazes de identificar um problema e se autocorrigirem, ou mesmo aprimorar o seu funcionamento, mas são incapazes de imaginar algo novo. E o momento atual exige encontrar uma solução nova, um modelo novo para o desenvolvimento, que não será produzido por nenhum equipamento. Caso contrário, se nos deixarmos levar pelas soluções dadas por aparelhos eletrônicos sofisticados que funcionam executando um programa preestabelecido, estaremos adiando um problema que comprometerá o nosso futuro.
Cada um de nós possui um cérebro com cerca de 100 bilhões de neurônios. Cada um deles, por sua vez, relaciona-se com milhares de outros através de sinapses, criando uma rede de extrema complexidade que controla nossas funções vitais. Isso permite pensar, sonhar, sofrer, amar, enfim, ter emoções que nenhuma máquina ou computador é capaz de emular.
Dependemos das máquinas, mas não somos seus escravos.
Henrique Lins de Barros é pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (CBPF-MCTI) e diretor da Escola Nacional de Botânica Tropical do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
Humano, pós-humano, transumano
por Oswaldo Giacoia Junior
Em nossos dias, a vertiginosa escalada do progresso tecnológico tornou o debate sobre o futuro do homem no planeta Terra ainda mais radical e mais acirrado, de modo que falar de uma filosofia preocupada com a dimensão ética desse problema exige uma retomada crítica dos pressupostos em jogo. Só assim será possível reconhecer, em expressões como o “fim da história”, “pós-humano”, “transumanidade”, assim como nas mais inflamadas e futurísticas fantasias, um certo viés de preocupação com a continuidade e a preservação da figura histórica do humano. Nesse horizonte, os rumos da filosofia no futuro podem ser divisados no espaço aberto entre os polos opostos, opções da superação tecnológica do humano, por um lado, e o apelo preservacionista à responsabilidade, por outro. A vertente da superação pode ser ilustrada pelo pós-modernismo de Jean-François Lyotard; Hans Jonas ilustra a recuperação por meio de uma heurística do medo, ou uma crítica da utopia irresponsável.
Lyotard questiona as metanarrativas históricas, comprometidas com a emancipação humana, do ponto de vista de sua sustentabilidade num mundo pós-moderno. A esse tipo de crítica, ele acrescentou recentemente um complemento: se a pós-modernidade é, para ele, ao mesmo tempo, o fim dessas representações românticas do homem como soberano da história, ela é também o princípio de uma superação da condição humana nelas representada.
É nesse panorama que se inserem as perspectivas pós e transumanas, a troca de carbono por silício, que tornaria potencialmente imortal o corpo orgânico. A isso, poderia se aliar uma reconfiguração da consciência, descentrada de sua identificação com a unidade subjetiva, ultrapassando o atrelamento aos cinco sentidos, conectada em redes neurais, simultaneamente com a miríade de centros virtuais de registro e processamento de informações. Para os membros do Extropy Institut, fundado pelo filósofo e cientista Max More no Vale do Silício, nos Estados Unidos, a atual base somática da personalidade pode ser considerada como hardware em processo de obsolescência, que deve ser substituído por um equipamento de tipo homo roboticus, imune a panes e disfunções orgânicas, capaz de desenvolver autoconsciência, ultrapassar e substituir o homo sapiens, como este o fez com o australopitecus na trajetória ascendente da escala evolutiva.
“A ciência libera para o agir humano um extraordinário potencial que altera a concepção tradicional de sua extensão e limites”
Ainda no final do século 20, numa outra vertente teórica, passou-se a cogitar novamente uma história com totalidade coerente, orientada numa direção, que possivelmente conduzirá a maior parte da humanidade para a meta da democracia liberal. Se, em 1989, já quase no limiar do século 21, Francis Fukuyama chocara o mundo com seu anúncio do fim da história, ele repetiu o gesto ao demonstrar que um olhar sobre o futuro não nos permite gostar daquilo que podemos ver, já que os progressos da ciência e da tecnologia ameaçam arruinar o perfil de humanidade conhecido e reconhecido até hoje. Entre os precedentes atuais, encontramos: a descoberta da influência genética e estrutura do cérebro sobre o comportamento; a manipulação farmacológica de comportamentos e emoções; os efeitos demográficos e sociais do prolongamento da vida; os designer babies. Quando as alternativas historicamente relevantes para a democracia liberal pareciam ter-se exaurido, Fukuyama afirmou que a história, tal como a conhecíamos, chegara ao fim. Os novos progressos da biotecnologia impõem uma revisão do argumento: não chegamos ao fim da história porque não vislumbramos um limite, ou fim, para o progresso técnico-científico.
O problema consiste em ponderar com equilíbrio e lucidez como os mais importantes avanços biotecnológicos podem afetar formas de consciência e comportamento, com inevitáveis reflexos sobre o futuro da própria democracia liberal. O fator X seria o nome do elemento, ou conjunto de elementos, que nos define como humanos, nova designação para uma constante e identificável “natureza humana”, que Fukuyama recupera a partir de uma retomada crítica da tradição filosófica do “direito natural”. Nesse sentido, somos confrontados com uma questão advinda da ótica do biogeneticista: não há ordem natural a preservar, porque não há ordem natural que a engenharia genética poderia destruir.
Nessas condições, por que razão não controlar o que até então foi deixado em aberto pelo acaso? Por que não realizar o sonho da absoluta autodeterminação? Tal como se apresenta atualmente, porém, o fator X não pode ser reduzido à constância unívoca dos tipos sanguíneos, comuns a todos os grupos humanos, à posse da faculdade de fazer escolhas morais com base numa razão universal; ou das estruturas profundas de todas as línguas humanas; nem à reciprocidade como tratamento mutuamente respeitoso e equitativo entre parceiros de uma sociedade, característica comum das sociedades avançadas; nem numa comunidade de emoções, sentimentos, ou mesmo consciência.
O fator X é a síntese e a integração no ser humano de todos esses predicados e qualidades. É ele que se apresenta como o “terreno da dignidade humana”. Essa ideia de natureza humana provê a base filosófica para um juízo ético sobre valores. Por si só, a ciência não é capaz de estabelecer e julgar, em termos de bem e mal, os fins a que se destina. As empresas de biotecnologia não podem controlar a si próprias, porque são governadas por interesses que as determinam, inclusive os econômico-financeiros. Apenas uma regulamentação jurídica internacional pode garantir o perfil de uma distinção entre fins (usos) aceitáveis e inaceitáveis da biotecnologia. Tudo se passa, portanto, como se Aldous Huxley [escritor inglês, autor de Admirável Mundo Novo; viveu de 1894 a 1963] estivesse certo, de modo que o traço mais significativo da biotecnologia contemporânea é a possibilidade de que ela irá alterar a natureza humana e, por meio disso, inserir-nos num estágio “pós-humano” da história.
Só por meio do enfrentamento aberto dessas questões será possível reconhecer expressões como o “fim da história” – sejam elas tomadas em chave pessimista ou otimista. Seria possível distinguir, por exemplo, entre as inflamadas e futurísticas fantasias biotecnológicas os mesmos rastros de alguns de seus tradicionais adversários teóricos, como os humanistas, que dessa vez depositariam sua confiança nas infinitas possibilidades de autopotenciamento do humano?
Ou justamente em função do perigo que ameaça a preservação de uma vida verdadeiramente humana na Terra torna-se necessária e urgente a preservação da figura histórica do humano, como guardião da natureza e das futuras gerações? Apesar das diferenças profundas, os opostos orbitam em torno do mesmo eixo, revisitam os mesmos arquivos ancestrais do imaginário religioso, e tomam o medo como a dynamis do engenho humano. Posta a questão nesses termos, não há como evitar um desconforto perante as alternativas teóricas que se nos defrontam.
Dentre elas, gostaria de destacar uma ética da finitude à altura dos desafios da sociedade tecnológica: a posição teórica e prática de Hans Jonas, cujas relevância, consistência e atualidade são emblemáticas. Jonas assume precisamente como tarefa a urgência de estabelecer limites ético-jurídicos para a pesquisa tecnológica, em rompimento com a postura antropocêntrica e a concepção instrumental da técnica. Ele se pergunta: até que ponto é eticamente justificável tornar disponível a base somática da personalidade?
Porque a ciência libera para o agir humano um extraordinário potencial que altera a concepção tradicional de sua extensão e limites, e os efeitos da intervenção tecnológica têm um poder cumulativo de destruição, cujas consequências podem ser irreversíveis, isso passa a incluir o conjunto da natureza na esfera de responsabilidade desse agir. O excesso de poder impõe ao homem esse dever de proteger o homem de si mesmo.
Futuristas exaltados e preservacionistas da natureza humana, transumanos e neo-humanistas não podem, pois, deixar, responsavelmente, de levar em conta um legado comum da história de nossa cultura, sob pena de, ao tentar fazer uma filosofia do futuro, permanecer ofuscados e intelectualmente embotados para as possibilidades catastróficas de uma má realização do eterno retorno do mesmo.
Oswaldo Giacoia Junior é professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp) e autor, entre outras obras, de Os Labirintos da Alma (Unicamp, 1997) e Nietzsche X Kant (Casa da Palavra, 2012)
Desde meados do século 20, com o desenvolvimento das tecnologias digitais, a convergência do computador e das telecomunicações e as interfaces do homem com a máquina, houve o surgimento de paradigmas teóricos para explicar os fenômenos que decorrem dessas novas relações. O termo pós-humano, por exemplo, tenta dar conta das mutações que as tecnologias estão provocando no corpo, assim como suas implicações antropológicas e filosóficas. O pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (CBPF-MCTI) Henrique Lins de Barros e o professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp) Oswaldo Giacoia Junior analisam essa questão.
NÓS E O MEDO DO DOMÍNIO DAS MÁQUINAS
Por Henrique Lins de Barros
As máquinas são uma invenção humana. Não conhecemos nenhum outro animal que tenha se aventurado na construção de um aparato capaz de transformar a força e amplificá-la como faz uma máquina, mesmo a mais simples. Conhecemos alguns exemplos de animais que utilizam ferramentas rudimentares. É o caso, por exemplo, de alguns primatas, como os chimpanzés, que usam pesadas pedras para quebrar cocos e extrair alimento ou buscam longos gravetos para retirar a sua refeição que se esconde numa cavidade. Também podem usar essas ferramentas rudimentares para se defender ou atacar. Nossos ancestrais distantes, os primeiros hominídeos, utilizaram ferramentas ou pequenas máquinas há mais de dois milhões de anos. Eles descobriram que era possível utilizar material encontrado e transformá-lo, fazendo um novo uso.
Assim, surgiram pequenos objetos que podiam produzir fogo, lanças que facilitavam a caça, facas que cortavam a carne, mudando a alimentação de forma drástica. Entretanto, não inventaram máquinas como nós entendemos hoje, pois elas são dispositivos que dependem de uma fonte de energia, são constituídas por mais de um elemento e têm a finalidade de executar uma tarefa para a qual foram idealizadas. A história que conhecemos nos diz que Arquimedes (Siracusa, 287 a.C.-212 a.C.) pensou e construiu dispositivos capazes de utilizar energia para executar determinada tarefa. As máquinas arquimedianas revolucionaram a técnica: polias, alavancas, cunhas, parafusos... permitiram realizar tarefas até então impossíveis de serem realizadas pela força humana. “Deem um ponto de apoio e moverei a Terra”, segundo a lenda, teria sido a frase dita por Arquimedes para mostrar a capacidade de levantar pesos com uma alavanca. Só faltava o ponto de apoio.
“Existem, de fato, máquinas que são capazes de identificar um problema e se autocorrigirem, ou mesmo aprimorar o seu funcionamento, mas são incapazes de imaginar algo novo.”
A máquina é um aparato mais sofisticado do que uma ferramenta. Serve, sem dúvida, para facilitar: guindastes são capazes de levantar grandes massas, motores permitem realizar deslocamentos sem esforço físico.
O século 20 viu nascer uma grande variedade de máquinas, graças aos avanços científicos obtidos ainda no século anterior. A compreensão dos processos termodinâmicos possibilitou desenvolver motores a vapor e a combustão interna, permitindo que se chegasse até o domínio do voo controlado. A invenção das lâmpadas permitiu uma nova relação com a noite. Os estudos envolvendo fenômenos elétricos colocaram no mercado motores silenciosos, mudaram as comunicações com telefones, telégrafos e televisões. Os satélites, lançados por foguetes que são capazes de sair da atmosfera terrestre, fizeram com que fosse possível interagir com outros continentes num intervalo de tempo ínfimo. Com os celulares as pessoas vivem a ilusão de não estarem a sós. As máquinas alteram a nossa relação com o mundo real, expandem nossa capacidade de atuação e abrem um novo campo de reflexão ao permitir que se consiga visualizar aspectos de um fenômeno que dependem de um grande esforço de cálculo.
Uma das mais impressionantes contribuições que as máquinas eletrônicas deram foi possibilitar realizar cálculos de tamanha complexidade que sem elas seria impossível. Os computadores, assim que surgiram, foram chamados de cérebros eletrônicos, nome impróprio, pois eles não realizam um raciocínio. Os computadores, ou ordinateurs (ordenadores), como os franceses usam, são máquinas capazes de tratar automaticamente vários tipos de informação e com isso apresentar um resultado que não seria possível obter sem o seu auxílio. Com eles é possível realizar estudos complexos em diversas áreas. Na área científica eles abriram um campo novo: passou a ser possível fazer cálculos e obter informação sobre propriedades de átomos ou moléculas e ‘projetar’ um novo material ou um novo medicamento. No campo da informação os computadores mudaram a vida de cada indivíduo, lançando as novidades cada vez mais rapidamente. Na biomédica eles são capazes de analisar com rapidez o resultado de exames e propor tratamentos. São capazes de estudar como as células se comunicam e de fazer previsões que dependem de cálculos repetidos um grande número de vezes. A capacidade dos computadores de grande porte tornou possível criar simulações e se ter uma previsão meteorológica com certa confiabilidade.
O século 20 vai passar para a história como o século da descoberta do voo controlado, assim como o século 16 ficou conhecido como o das Grandes Navegações. A revolução que o avião produziu é impressionante: passou a ser possível fazer deslocamento em curto espaço de tempo. Pessoas podem viajar, produtos perecíveis podem ser comercializados.
Em resumo: as máquinas ampliaram o horizonte do homem, assim como, em tempos pré-históricos, as ferramentas possibilitaram aos hominídeos se desenvolver com a dieta de proteínas devido à caça mais eficiente. Mas não há possibilidade de máquinas criarem obras de arte, como a Nona Sinfonia de Beethoven: O Freunde, nicht diese Töne! (Ó, amigos, mudemos o tom!).
Muitas vezes não percebemos o que ocorre por trás de um equipamento. Vivemos hoje diante do medo. As informações que chegam a nós mostram que a Terra está sofrendo os efeitos da atuação humana. A produção de gases de efeito estufa, provocando uma tendência de aquecimento global, é produto de máquinas que utilizam carvão mineral ou derivados de petróleo. Mesmo soluções mais limpas causam mudanças ambientais inevitáveis. Grandes áreas são necessárias para as hidrelétricas, para as usinas termonucleares, ou para as usinas eólicas ou solares. Além disso, os componentes de máquinas têm que ser fabricados. Como exemplo, para fazer uma pequena conexão USB, que são produzidas aos milhões, e igualmente descartadas, utiliza-se algo como 150 litros de água; para produzir um quilo de alumínio, 100 mil litros de água são necessários; um automóvel, 400 mil litros.
Máquinas são mais eficientes que operários, mas são extremamente especializadas. Não são capazes de pensar. Existem, de fato, máquinas que são capazes de identificar um problema e se autocorrigirem, ou mesmo aprimorar o seu funcionamento, mas são incapazes de imaginar algo novo. E o momento atual exige encontrar uma solução nova, um modelo novo para o desenvolvimento, que não será produzido por nenhum equipamento. Caso contrário, se nos deixarmos levar pelas soluções dadas por aparelhos eletrônicos sofisticados que funcionam executando um programa preestabelecido, estaremos adiando um problema que comprometerá o nosso futuro.
Cada um de nós possui um cérebro com cerca de 100 bilhões de neurônios. Cada um deles, por sua vez, relaciona-se com milhares de outros através de sinapses, criando uma rede de extrema complexidade que controla nossas funções vitais. Isso permite pensar, sonhar, sofrer, amar, enfim, ter emoções que nenhuma máquina ou computador é capaz de emular.
Dependemos das máquinas, mas não somos seus escravos.
Henrique Lins de Barros é pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (CBPF-MCTI) e diretor da Escola Nacional de Botânica Tropical do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
Humano, pós-humano, transumano
por Oswaldo Giacoia Junior
Em nossos dias, a vertiginosa escalada do progresso tecnológico tornou o debate sobre o futuro do homem no planeta Terra ainda mais radical e mais acirrado, de modo que falar de uma filosofia preocupada com a dimensão ética desse problema exige uma retomada crítica dos pressupostos em jogo. Só assim será possível reconhecer, em expressões como o “fim da história”, “pós-humano”, “transumanidade”, assim como nas mais inflamadas e futurísticas fantasias, um certo viés de preocupação com a continuidade e a preservação da figura histórica do humano. Nesse horizonte, os rumos da filosofia no futuro podem ser divisados no espaço aberto entre os polos opostos, opções da superação tecnológica do humano, por um lado, e o apelo preservacionista à responsabilidade, por outro. A vertente da superação pode ser ilustrada pelo pós-modernismo de Jean-François Lyotard; Hans Jonas ilustra a recuperação por meio de uma heurística do medo, ou uma crítica da utopia irresponsável.
Lyotard questiona as metanarrativas históricas, comprometidas com a emancipação humana, do ponto de vista de sua sustentabilidade num mundo pós-moderno. A esse tipo de crítica, ele acrescentou recentemente um complemento: se a pós-modernidade é, para ele, ao mesmo tempo, o fim dessas representações românticas do homem como soberano da história, ela é também o princípio de uma superação da condição humana nelas representada.
É nesse panorama que se inserem as perspectivas pós e transumanas, a troca de carbono por silício, que tornaria potencialmente imortal o corpo orgânico. A isso, poderia se aliar uma reconfiguração da consciência, descentrada de sua identificação com a unidade subjetiva, ultrapassando o atrelamento aos cinco sentidos, conectada em redes neurais, simultaneamente com a miríade de centros virtuais de registro e processamento de informações. Para os membros do Extropy Institut, fundado pelo filósofo e cientista Max More no Vale do Silício, nos Estados Unidos, a atual base somática da personalidade pode ser considerada como hardware em processo de obsolescência, que deve ser substituído por um equipamento de tipo homo roboticus, imune a panes e disfunções orgânicas, capaz de desenvolver autoconsciência, ultrapassar e substituir o homo sapiens, como este o fez com o australopitecus na trajetória ascendente da escala evolutiva.
“A ciência libera para o agir humano um extraordinário potencial que altera a concepção tradicional de sua extensão e limites”
Ainda no final do século 20, numa outra vertente teórica, passou-se a cogitar novamente uma história com totalidade coerente, orientada numa direção, que possivelmente conduzirá a maior parte da humanidade para a meta da democracia liberal. Se, em 1989, já quase no limiar do século 21, Francis Fukuyama chocara o mundo com seu anúncio do fim da história, ele repetiu o gesto ao demonstrar que um olhar sobre o futuro não nos permite gostar daquilo que podemos ver, já que os progressos da ciência e da tecnologia ameaçam arruinar o perfil de humanidade conhecido e reconhecido até hoje. Entre os precedentes atuais, encontramos: a descoberta da influência genética e estrutura do cérebro sobre o comportamento; a manipulação farmacológica de comportamentos e emoções; os efeitos demográficos e sociais do prolongamento da vida; os designer babies. Quando as alternativas historicamente relevantes para a democracia liberal pareciam ter-se exaurido, Fukuyama afirmou que a história, tal como a conhecíamos, chegara ao fim. Os novos progressos da biotecnologia impõem uma revisão do argumento: não chegamos ao fim da história porque não vislumbramos um limite, ou fim, para o progresso técnico-científico.
O problema consiste em ponderar com equilíbrio e lucidez como os mais importantes avanços biotecnológicos podem afetar formas de consciência e comportamento, com inevitáveis reflexos sobre o futuro da própria democracia liberal. O fator X seria o nome do elemento, ou conjunto de elementos, que nos define como humanos, nova designação para uma constante e identificável “natureza humana”, que Fukuyama recupera a partir de uma retomada crítica da tradição filosófica do “direito natural”. Nesse sentido, somos confrontados com uma questão advinda da ótica do biogeneticista: não há ordem natural a preservar, porque não há ordem natural que a engenharia genética poderia destruir.
Nessas condições, por que razão não controlar o que até então foi deixado em aberto pelo acaso? Por que não realizar o sonho da absoluta autodeterminação? Tal como se apresenta atualmente, porém, o fator X não pode ser reduzido à constância unívoca dos tipos sanguíneos, comuns a todos os grupos humanos, à posse da faculdade de fazer escolhas morais com base numa razão universal; ou das estruturas profundas de todas as línguas humanas; nem à reciprocidade como tratamento mutuamente respeitoso e equitativo entre parceiros de uma sociedade, característica comum das sociedades avançadas; nem numa comunidade de emoções, sentimentos, ou mesmo consciência.
O fator X é a síntese e a integração no ser humano de todos esses predicados e qualidades. É ele que se apresenta como o “terreno da dignidade humana”. Essa ideia de natureza humana provê a base filosófica para um juízo ético sobre valores. Por si só, a ciência não é capaz de estabelecer e julgar, em termos de bem e mal, os fins a que se destina. As empresas de biotecnologia não podem controlar a si próprias, porque são governadas por interesses que as determinam, inclusive os econômico-financeiros. Apenas uma regulamentação jurídica internacional pode garantir o perfil de uma distinção entre fins (usos) aceitáveis e inaceitáveis da biotecnologia. Tudo se passa, portanto, como se Aldous Huxley [escritor inglês, autor de Admirável Mundo Novo; viveu de 1894 a 1963] estivesse certo, de modo que o traço mais significativo da biotecnologia contemporânea é a possibilidade de que ela irá alterar a natureza humana e, por meio disso, inserir-nos num estágio “pós-humano” da história.
Só por meio do enfrentamento aberto dessas questões será possível reconhecer expressões como o “fim da história” – sejam elas tomadas em chave pessimista ou otimista. Seria possível distinguir, por exemplo, entre as inflamadas e futurísticas fantasias biotecnológicas os mesmos rastros de alguns de seus tradicionais adversários teóricos, como os humanistas, que dessa vez depositariam sua confiança nas infinitas possibilidades de autopotenciamento do humano?
Ou justamente em função do perigo que ameaça a preservação de uma vida verdadeiramente humana na Terra torna-se necessária e urgente a preservação da figura histórica do humano, como guardião da natureza e das futuras gerações? Apesar das diferenças profundas, os opostos orbitam em torno do mesmo eixo, revisitam os mesmos arquivos ancestrais do imaginário religioso, e tomam o medo como a dynamis do engenho humano. Posta a questão nesses termos, não há como evitar um desconforto perante as alternativas teóricas que se nos defrontam.
Dentre elas, gostaria de destacar uma ética da finitude à altura dos desafios da sociedade tecnológica: a posição teórica e prática de Hans Jonas, cujas relevância, consistência e atualidade são emblemáticas. Jonas assume precisamente como tarefa a urgência de estabelecer limites ético-jurídicos para a pesquisa tecnológica, em rompimento com a postura antropocêntrica e a concepção instrumental da técnica. Ele se pergunta: até que ponto é eticamente justificável tornar disponível a base somática da personalidade?
Porque a ciência libera para o agir humano um extraordinário potencial que altera a concepção tradicional de sua extensão e limites, e os efeitos da intervenção tecnológica têm um poder cumulativo de destruição, cujas consequências podem ser irreversíveis, isso passa a incluir o conjunto da natureza na esfera de responsabilidade desse agir. O excesso de poder impõe ao homem esse dever de proteger o homem de si mesmo.
Futuristas exaltados e preservacionistas da natureza humana, transumanos e neo-humanistas não podem, pois, deixar, responsavelmente, de levar em conta um legado comum da história de nossa cultura, sob pena de, ao tentar fazer uma filosofia do futuro, permanecer ofuscados e intelectualmente embotados para as possibilidades catastróficas de uma má realização do eterno retorno do mesmo.
Oswaldo Giacoia Junior é professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp) e autor, entre outras obras, de Os Labirintos da Alma (Unicamp, 1997) e Nietzsche X Kant (Casa da Palavra, 2012)
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