AGENDA CULTURAL

4.5.14

"A literatura perde quando misturada à política", diz premiado escritor cubano

O escritor cubano Leonardo Padura visitou o Brasil promovendo uma obra sua tem potencial para arrasar o sonho socialista, mas não foi censurada pelo governo castrista. 'A utopia será sempre pertinente'
por Tadeu Breda, da revista RBA publicado 04/05/2014 
GERARDO LAZZARI/RBA
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Agraciado com Prêmio Nacional de Literatura, Padura escreveu romance que faz terra-arrasada do socialismo cubano
São Paulo – A primeira frase que me disse o escritor cubano Leonardo Padura foi uma recusa: não faria nenhum comentário sobre suas impressões do Brasil. A última, um desabafo: não gosta de falar de política. Contudo, tanto na conversa que tivemos como na palestra que ofereceu no Sesc Consolação, em São Paulo, arriscaria breves análises sobre o país que, em meados de abril, visitava pela primeira vez. E discorreria livremente, mas medindo as palavras, sobre as desventuras da ilha socialista.
“Olha, não me sinto à vontade falando sobre um país em que estou há dois dias, sendo que vi mais jornalistas do que qualquer outro tipo de pessoa”, afirmou, enquanto justificava sua fuga da primeira pergunta que lhe fiz, após breves apresentações, “Mucho gusto”, e um aperto de mãos. “Me incomoda quando alguém vai a Cuba, fica uma lá semana e depois sai dizendo que conhece Cuba, que pode explicar o que é Cuba.”
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Não demorou, porém, para que baixasse a guarda. Padura diria que a realidade brasileira é muito mais rica do que sugerem as telenovelas, e que espera ver uma Seleção bem preparada para a Copa do Mundo – nos últimos anos, avalia, o Brasil não havia conseguido montar um “verdadeiro time”. Elogiou o programa Mais Médicos, que tem trazido doutores cubanos para atender populações carentes, e externou sua admiração por Dilma Rousseff e seu antecessor, Luiz Inácio Lula da Silva. Sobre Raúl e Fidel Castro, nenhuma palavra.
“Me cansa falar sobre política cubana”, arremataria, depois do último gole de café e mais de duas horas de entrevista – boa parte dela dedicada à vida e à liberdade dos cubanos sob o regime do Partido Comunista. “Certa vez escrevi uma coluna intitulada 'Queria ser Paul Auster', porque li uma entrevista do escritor norte-americano em que lhe perguntavam apenas sobre literatura, cinema e beisebol. É disso que eu gosto de falar, mas estão sempre me perguntando sobre política de Cuba...”
Seria inevitável fazê-lo desta vez. Aos 59 anos, Padura veio ao Brasil para apresentar O homem que amava os cachorros, publicado pela editora Boitempo no final do ano passado. É um livro encharcado de política – e de Cuba. “Não me interessa escrever sobre política. E me interessa muito menos fazer política com minha literatura. Mas um romance sobre León Trotski acaba sendo dominado pela política”, reconhece. “Era uma pessoa que almoçava e jantava política. E, claro, também defecava política.”
Padura passou por Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo promovendo sua obra. No Distrito Federal, almoçou com Dilma – a primeira chefe de Estado a recebê-lo em toda sua carreira. “Foi ideia dela”, explica. “Estivemos três horas comendo e conversando numa atmosfera bastante informal. Falamos de Cuba e do Brasil, e fumamos um cigarro cubano. Fiquei espantado com os comentários que fez sobre meus livros: as referências mostram que ela se interessa muito pelo que escrevo.”
Não apenas Dilma, mas qualquer latino-americano “de esquerda” se interessará pelas 589 páginas de O homem que amava os cachorros. É um livro capaz de fazer terra-arrasada das versões cubana e soviética do socialismo, mas sem endossar o discurso virulento de Miami. Embora demolidoras, as críticas de Padura não perdem a ternura. “Já não é possível uma utopia nos moldes do século 20”, decreta. “Mas a utopia continua sendo pertinente. O mundo está necessitado de mais justiça e mais igualdade.”
Um dos principais líderes da Revolução Russa, Trostki é o principal personagem do romance – mas é apenas um dos homens que amavam os cachorros criados ou recriados por Padura. Há outros dois: Ramón Mercader, jovem comunista recrutado entre as fileiras republicanas durante a Guerra Civil Espanhola com a incumbência de cravar uma picareta na cabeça de Trotski; e Iván, jornalista e escritor frustado que vive na Cuba contemporânea ganhando a vida como veterinário amador.
A vida dos três se entrelaça – e se complementa – na narrativa ora ficcional ora histórica do romancista cubano: um texto tão bem amarrado que é difícil saber o que realmente aconteceu e o que é invenção. “A literatura é o reino da liberdade”, define, ao comentar a fluidez com que transita entre fatos reconhecidos pela historiografia e a inventividade artística. “Essa é a vantagem de ser romancista: posso preencher os vazios históricos com imaginação. O historiador está lascado: pode apenas escrever a história.”
Padura garante, porém, que apenas usou sua competência literária para recriar aspectos da vida de Trotski e Mercader que jamais foram revelados pelos historiadores. “O mais difícil foi escrever sobre o revolucionário russo: sua vida está praticamente biografada dia a dia”, relata, afirmando que, em compensação, falar de seu algoz permitiu voos maiores. “Tive absoluta liberdade, porque Ramón é um personagem histórico que não tem história. Sua história foi totalmente fabricada pelo serviço secreto soviético.”
As parcas informações “confiáveis” sobre Mercader, Padura as encontrou numa biografia escrita pelo irmão do espanhol escalado para matar Trotski. “Mas é um livro que trata de justificar o crime. Por isso, tudo o que não sejam fatos básicos de sua vida – data e local de nascimento ou a escola em que estudou – deve ser colocado em dúvida”, ressalva. “Tive de fazer uma pesquisa pelas adjascências: como eram treinados os agentes de Moscou, que papel tiveram na Guerra Civil Espanhola etc. Assim construí o personagem.”
Iván, por sua vez, é uma criação exclusiva de Padura. “Mais que autobiográfico, é um personagem que retrata minha geração: nossos problemas, as ilusões e as frustrações”, explica. “Sou parte da geração escondida.” Assim como seu criador, Iván estudou jornalismo e conciliou o ofício da imprensa com a literatura. E acreditou no socialismo propugnado por Fidel. Mas, enquanto Padura foi reconhecido com o Prêmio Nacional, maior honraria aos escritores da Ilha, Iván acabou vilipendiado pelo regime. “É uma geração que nunca teve rosto nem poder, mas teve de ser obediente.”
Em O homem que amava os cachorros, o alterego geracional de Padura é responsável por conduzir as críticas mais diretas à tríade governo, partido e Estado cubanos. Mas o escritor afirma que a ilha está presente em cada frase. Porque, como faz questão de sublinhar, falar de Cuba é tudo o que sabe e continuará a fazer. “É meu ambiente cultural e natural”, reconhece. “Ainda que relate a vida de Trostki na Turquia, tudo está feito para falar de Cuba.”
Contudo, enquanto a vida do revolucionário russo e do agente espanhol é utilizada para apontar os excessos do socialismo soviético – as mortes, as mentiras, a manipulação de consciências –, o fracasso de Iván vai ao epicentro da vida na Ilha. O personagem sofre represálias profissionais por escrever um livro que não segue a linha artística do partido e vê seu irmão morrer afogado na tentativa de fugir do país, uma vez que fora expulso da universidade apenas por ser homossexual. Goza as benesses da parceria econômica entre Havana e Moscou, e passa fome quando cai o Muro de Berlim.
Apesar de não citar em nenhum momento o nome de Fidel ou Raúl, O homem que amava os cachorros bate tão duramente no regime castrista que dá a sensação de não haver mais censura em Cuba. Mas Padura não tergiversa sobre o assunto. “O governo ainda hoje pretende ter o controle da informação, porque pensa que assim as coisas funcionarão melhor”, conta, lamentando as dificuldades vividas diariamente pelos cidadãos. “As pessoas têm problemas para conseguir comida, chegar ao trabalho ou fazer pequenos consertos em casa. É uma vida muito complicada.”
A visita de Padura ao Brasil passou despercebida se comparada ao furor trazido pela passagem de outra cubana que, morando na Ilha, como ele, também critica o regime. Há pouco mais de um ano, o desembarque da blogueira Yoani Sánchez suscitou demonstrações de amor e ódio. Houve esquerdistas segurando bandeiras de Cuba para hostilizá-la, e liberais festejando sua presença, tudo com ampla cobertura da mídia tradicional. Padura deu algumas poucas entrevistas. Não lotou o auditório do Sesc Consolação nem despertou paixões políticas entre os brasileiros. E sabe por quê.
Apesar de dizer as mesmas coisas que Yoani, às vezes coisas até mais graves, nunca tive os mesmos problemas que ela, pois digo de outra maneira – de uma maneira mais inteligente. Não faço suposições. Me baseio em fatos, e ninguém pode dizer que estou manipulando. Yoani emite opiniões, e ainda lhes dá um revestimento político”, diferencia. “Não coloco minha literatura nem a favor nem contra o governo. Escrevo o que acredito que tenho que escrever. Por isso sou criticado tanto pelo regime como pela dissidência. Quando misturamos política e literatura, quem sai perdendo é a literatura.”

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