Caio Porfírio*
O meu primeiro contato com o poeta Mário Quintana foi por volta do início dos anos setenta, quando ele gravou, para o Museu da Imagem e do Som da União Brasileira de Escritores, um belo e minucioso depoimento sobre sua vida e sua obra de poeta e tradutor.Gravação, como quase todas as anteriores e posteriores, feitas com escritores e poetas de destaque das nossas letras, na biblioteca da entidade. Lembro-me de que quem o levou para esse depoimento pessoal foi o ensaísta e crítico Antônio Hohlfeldt, seu conterrâneo. Participaram com perguntas Aluysio Mendonça Sampaio, Jorge Rizzini, Raimundo de Menezes e eu. Destaco só uma pergunta que lhe fiz:
- Você gosta de
esportes, de futebol?
- Gosto de
atletismo, de suas belas exibições, mas nunca pratiquei esporte.
Eu me detinha mais
em olhá-lo, ali meio encolhido na cadeira, já envelhecido, respondendo as
perguntas sem muito interesse, sem vivacidade. Pareceu-me até um tanto aéreo,
em perfeita solidão à frente do gravador e cercado de admiradores. Enfatizou:
- Não gosto de São
Paulo. Nas vezes que vim aqui, passei de passagem para Piracicaba.
Ficava na casa de
uma amiga.
- E em Piracicaba
eu pouco ia à rua, ficava vendo-a da janela, lendo na sala.
No comportamento,
nos gestos, na maneira meio encolhida de se sentar, nas respostas lentas, em
tudo, no físico e no espírito, eu via mais a Poesia do que o homem. Um poeta da
cabeça aos pés.
Depois, na conversa
descontraída no salão da sede, a minha impressão permaneceria a mesma: ali
estava, meio refestelado na poltrona, a Poesia com o cognome de Mário Quintana.
Ou melhor: não apenas o poeta, mas o intelectual na sua integridade. Um homem
que acumulou cultura, tornou-se poeta e tradutor de primeira linha, vivia do
espírito para o espírito, da arte e para a arte, o lado sensível que toda
criatura humana possui e que nele alcançou uma dimensão quase divinatória. Daí
em parte a sua enorme simplicidade; daí a sua grande solidão, que foi o seu
pálio e a sua sombra protetora.
Encontrei-o outras
vezes em bienais de livros. Numa delas, aqui em São Paulo, lá estava ele, num
estande vazio, não recordo de que editora. Sozinho num canto, vendo a multidão
passar e a examinar livros. Acerquei-me dele, sentei-me ao seu lado:
- Sozinho, mestre
Quintana?
- Tire o mestre. Gosto
de ficar assim, apenas assistindo... E com este calor... Os amigos estão por
aí.
Puxei conversa com
o poeta. Lembrei-lhe o depoimento que fizera para o Museu da União Brasileira
de Escritores.
- Quer uma cópia?
- Se quiser me
mandar, agradeço.
Não demonstrou
grande interesse em recebê-la. Falei, falei, falei, e ele, embora me ouvisse
com atenção, pareceu-me não se interessar muito pela conversa. Pensei numa
desculpa para sair. Foi quando ele começou a me perguntar sobre poetas e
escritores da minha terra, o Ceará. Conhecia, de perto, a obra de vários deles,
particularmente os mais antigos. A conversa tornou-se agradável. O bate-papo
foi excelente. Prometi visitá-lo em Porto Alegre, capital que eu não conhecia,
apesar de muitos convites e oportunidades de ir lá.Ele lembrou-se, para meu
espanto:
- E vocês se
espantaram quando falei que passava direto por São Paulo e ficava em
Piracicaba.
Começou a chegar
amigos e admiradores e o estande de repente se encheu. Passou a dar atenção às
outras pessoas.
Sempre que eu o
olhava, quieto, enrugadinho, vinha-me uma dor no coração: aquela sumidade,
aquela Poesia viva, por poucos votos de diferença perdeu o concurso Intelectual
do Ano e não foi agraciado com o troféu Juca Pato; tentou e tentou como dizia Noel
Rosa, com muita propriedade; ‘São nossas coisas, são coisas nossas...’
A última vez que o
vi foi de longe, na mesma bienal. Estava o poeta cercado de gente, abanando-se
com o lenço. Saudou-me.
- Como vai a sua
Fortaleza?
- E a sua
Piracicaba?
Voltou para Porto
Alegre e de lá continuou mandando sinais para o País inteiro de como fazer
poesia limpidamente lírica, limpidamente humana, limpidamente filosófica.
Espiritualizou-se nela e com ela se imortalizou.
POETA, TRADUTOR,
JORNALISTA
Mário de Miranda
Quintana fez as primeiras
letras em sua cidade natal, Alegrete, onde nasceu em 1906, mudando-se em 1919
para Porto Alegre. Ali estudou no Colégio Militar e publicou suas primeiras
produções literárias. Considerado o ‘poeta das coisas simples’, com um estilo
marcado pela ironia, profundidade e perfeição técnica, trabalhou como
jornalista e tradutor quase toda a sua vida. Foram elogiadas e se tornaram
paradigmáticas suas traduções de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, e
Mrs Dalloway, de Virgínia Woolf.
Em 1953 começou a
trabalhar no jornal Correio do Povo, como colunista da página de cultura, que
saía aos sábados, e ali ficou até 1977. Em 1940, lançou o seu primeiro livro de
poesias, A Rua dos Cataventos, iniciando a carreira de poeta, escritor e autor
infantil. Chegam a mais de cinquenta os títulos publicados.
Mario Quintana não
se casou nem teve filhos. Solitário, viveu grande parte da vida em hotéis: de
1968 a 1980, residiu no Majestic, no centro histórico de Porto Alegre, de onde
foi despejado quando o Correio do Povo encerrou temporariamente suas
atividades, por problemas financeiros, e Quintana, sem salário, deixou de pagar
o aluguel. O ex-jogador da seleção Falcão cedeu a ele um dos quartos do Hotel
Royal, de sua propriedade. A uma amiga que achou pequeno o espaço, Quintana
disse: ‘Eu moro em mim mesmo. Não faz mal que o quarto seja pequeno. É bom,
assim tenho menos lugares para perder as minhas coisas”
Essa mesma amiga,
contratada para registrar em fotografia os oitenta anos de Quintana,
conseguiu-lhe um apart-hotel no centro da cidade, onde o poeta viveu até sua
morte, em 1994. Em 1982, o prédio do Hotel Majestic, que fora considerado um
marco arquitetônico de Porto Alegre, foi tombado. Atendendo a pedidos dos fãs
gaúchos, o governo estadual do Rio Grande do Sul adquiriu o imóvel e o
transformou em centro cultural, batizado como Casa de Cultura Mário Quintana.
*Caio Porfírio,
escritor, crítico literário, secretário administrativo da União
Brasileira de Escritores, ganhador do Prêmio Jabuti
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