AGENDA CULTURAL

30.6.14

ENTREVISTA: é possível humanizar a globalização?

Primeiro representante das Américas a presidir a maior central sindical internacional, João Felício avalia que hoje os trabalhadores estão na defensiva
por Vitor Nuzzi publicado 21/06/2014 
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O Brasil é um dos poucos países onde não houve reforma trabalhista e onde não caiu a taxa de sindicalização, um dos poucos onde houve distribuição de renda e a classe trabalhadora melhorou de vida
Ex-presidente da CUT, o professor João Felício foi confirmado em 23 de maio para o comando da Confederação Sindical Internacional (CSI), maior entidade global de trabalhadores, com representação em mais de 160 países. Primeiro dirigente das Américas a ocupar o comando da CSI, formada em 2006, ele lembra que a globalização foi acompanhada de mais concentração de riqueza e que esse é um dos desafios do movimento sindical. “É preciso que haja mais lutas internacionais”, diz ele. 


Na fundação da CSI, em 2006, o slogan era “humanizar a globalização”. Logo depois, em 2008, veio a crise financeira. A globalização é humanizável?

Considero difícil. A globalização atende muito mais ao interesse do capital. Não que defendamos que cada país fique isolado, é importante ter relações comerciais, culturais, mas também relações sociais, quando você procura garantir direitos de forma global. A luta central que tem de ocorrer é por direitos. Não concordamos e nunca tivemos simpatia por tratados de comércio que não levem em consideração a garantia de direitos, desenvolvimento, a soberania de cada país. Tal como tem se dado, a globalização não respeita nada disso. Com a crise recente, os ricos ficaram mais ricos. Talvez tenha sido o período nos últimos 20 anos que se acentuaram relações comerciais, as transnacionais se expandiram, e houve o período de maior concentração de riqueza da história. A crise de 2008 não levou a uma distribuição de renda, ao contrário. Esse talvez seja um dos grandes desafios do movimento sindical internacional.

Nesse processo de internacionalização, as empresas foram mais ágeis do que o movimento sindical?
Sem dúvida. Eles se unificam muito mais, são mais unidos na exploração, têm recursos para isso, se expandem com facilidade e têm uma coisa que nós não temos: o apoio da maioria dos governos. Na imensa maioria dos países, há sempre uma parceria do governo com o capital, e geralmente contra nós. Geralmente a unidade é entre eles, o que demonstra que a maioria dos governos está a serviço de uma única classe social. Ao se constatar isso, a facilidade de o capital se deslocar e impor a sua lógica e sua hegemonia é muito maior. O Brasil é um dos poucos países onde não houve reforma trabalhista e onde não caiu a taxa de sindicalização, um dos poucos onde houve distribuição de renda e a classe trabalhadora melhorou de vida. Eu não tenho nenhum receio de dizer que os governos perderam uma grande oportunidade de controlar o setor financeiro, que até hoje vive numa libertinagem total. Causaram a pior crise da história, e os governos não tiveram força política para impor um controle. Socorreram o sistema financeiro, sugaram as contas públicas. Estão fazendo as reformas em cima de quem? Do funcionalismo público, trabalhadores. Quando a gente, algum tempo atrás, falava em luta de classes, tinha sempre alguém que dizia que esse discurso era atrasado. O que está acontecendo no mundo hoje é a mais cabal demonstração de que a luta de classes existe, e como disse um ricaço americano recentemente, existe e eles estão vencendo. Toda aquela fase espetacular, a melhor fase da história, os anos 50, 60, até os 70, acabou.

O Estado do bem-estar social...
De acúmulo de direitos, que teve influência no nosso país. Tudo isso está tendo um fim. O movimento sindical está tendo de se adaptar. Nesse sentido, o debate sobre projetos, papel do Estado, é importantíssimo. O movimento sindical não pode apresentar uma pauta de reivindicação trabalhista, imediata, sem debater o mundo em que a gente vive, que sociedade a gente quer. Se a gente não debater esses assuntos, seremos sempre presa fácil do capital.

O que pode mudar em termos de política da CSI daqui para a frente? Pode mudar o eixo das políticas, ou globalmente você tem de pensar em estratégias gerais?

A CSI é uma organização que eu diria progressista. A análise feita tem muito apoio nosso, nos identificamos dentro da CSI com suas resoluções. E ela tem de ser a média, tem de expressar a vontade de suas filiadas, que tem matizes ideológicos diferenciados, entidades mais à esquerda e mais conservadoras. Ela tem de ter muito jogo de cintura. Acho que o congresso e as decisões têm conseguido estabelecer essa unidade ideológica. A segunda coisa: não é que a CSI está precisando de uma mudança, ela precisa combinar melhor entre o lobby que é feito nos organismos internacionais – pressão política na OIT, na OMC, no G20 –, onde a gente atua com desenvoltura e competência, mas precisa combinar isso com a concretização das ações que são decididas em suas instâncias. Sei que isso não depende somente dela, e eu quero contribuir muito nessa área. Não basta adotar uma resolução sobre determinado assunto e orientarmos as filiadas que as ações são fundamentais. É preciso construir as ações, sensibilizar as centrais em cada país. Se a gente quiser concretizar aquilo que a esquerda sempre falou, que a classe operária é internacional, é preciso ter mais lutas internacionais. Qual é a luta que a gente faz com eficiência? É a luta pelo trabalho decente. Mas é necessário que não sejam resoluções “orientativas”, mas que você adota e espera que a sua base esteja concretizando. E isso eu sei que não depende só da CSI. Não adianta a direção ter vontade política se você não consegue sensibilizar sua base filiada. É preciso um diálogo mais eficiente, estimular que cada central saia de seu mundo, de suas ações pelo país. Não vamos resolver os problemas com ações fragmentadas. Acho que a CSI tem posições corretas, mas está faltando.... Porque o capital derruba fronteiras com muita facilidade. Determina sua lógica, compra governos, e nós ficamos na defensiva, na luta em cada país. 
Não adianta a direção ter vontade política se você não consegue sensibilizar sua base filiada. É preciso um diálogo mais eficiente, estimular que cada central saia de seu mundo, de suas ações pelo país. Não vamos resolver os problemas com ações fragmentadas

A OIT hoje é um aliado. Em 2012, vocês conseguiram eleger o Guy Ryder como diretor-geral. Houve uma mudança de política, ou lá também dentro das Nações Unidas é uma instituição que carece de força?

A eleição do Guy Ryder foi uma grande novidade na OIT. Nunca um sindicalista tinha chegado a ocupar o cargo máximo. E a CUT teve uma participação importante na eleição dele. Quem elege é o conselho de administração: são 28 votos de governo, 14 de trabalhadores e 14 de empresários. Ninguém consegue se eleger sem apoio de parte dos governos. Na reta final, ficaram um empresário francês (Gilles de Robien) e o Guy Ryder. Conseguimos garantir o apoio de todos os governos da América Latina. Foi um tremendo avanço. A OIT é o único organismo internacional em que temos direito de participação. E achamos que as convenções da OIT são convenções que procuram humanizar o mundo do trabalho, procuram normatizar o mundo do trabalho para que ele tenha relações respeitosas. Por causa disso, por ser o único organismo em que temos o direito de falar, ela sofre um brutal ataque por parte de governos conservadores. Alguns países querem diminuir o papel dela, querem que ela apenas oriente, sem acompanhar, sem fiscalizar. E aí é o mundo da selvageria. Essa pressão política de alguns governos conservadores e do capital já existia antes da eleição do Guy Ryder. Com a eleição dele, se acentuou.  Querem tirar o poder normativo dela, transformá-la numa ONG de baixíssima eficiência.

Grandes potências, inclusive?

O orçamento da OIT, a maior fatia, quem mais paga é o governo americano. Não interessa para o governo americano ter uma OIT forte, com a total desregulamentação que existe no mercado de trabalho daquele país. 

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