Sergio Saraiva - 27/12/2014
Em um ano de acontecimentos da ordem de uma Copa do Mundo e de uma eleição antecedida de uma tragédia que vitimou um dos seus principais candidatos, o personagem principal não foi nem um atleta e nem um político, mas sim a figura do revoltoso cashmere.
Revolta Cashmere – assim a “The Economist” chamou o inusitado movimento que tomou as ruas do Brasil em 2014. Pessoas brancas, bem vestidas, daí o designativo de cashmere, bem posicionadas social e financeiramente, de repente saem às ruas no intento de derrubar um governo democraticamente eleito.
Sem a ironia típica dos ingleses, chamamos os de “os coxinhas”.
A “The Economist” foi realmente feliz. Sem dúvida, Revolta Cashmere é um nome adequado para descrever nossa luta de classes unilateral e invertida.
Não nos enganemos, vivemos a última década envolvidos em uma luta de classes como nunca antes neste país. Luta de classes singular, invertida, onde as classes dominantes são protagonistas. Reagem ao avanço das classes populares que marcham inconscientes da própria luta em que estão inseridas.
Em 2014, a luta que até então era surda, frente à eminência de mais quatro anos fora do poder federal, jogou o revoltoso cashmere nas ruas.
Seus gritos de guerra: “não vai ter Copa”, “vai tomar no cu”, “fora Dilma, e leve o PT junto” e o indefectível “vai pra Cuba”.
Basta recordá-los para ver que o revoltoso cashmere é antes de tudo um derrotado. Alguém que luta contra seu próprio país por nele se considerar um estrangeiro jamais vencerá.
Seu inimigo – os bolivarianos. Ainda que de bolivariano mesmo somente a mesma classe média reacionária no Brasil e na Venezuela.
O revoltoso cashmere se recusa a reconhecer que seu inimigo é qualquer ação que venha a reduzir, minimamente que seja, a nossa escandalosa desigualdade. Que reduza as vantagens comparativas com as quais se identifica como superior aos “nativos”. O revoltoso cashmere acusa Lula de jogar pobres contra ricos. E, como o revoltoso cashmere se filia aos ricos, sente-se pessoalmente atacado.
O ano mal havia começado e o combate que deram aos meninos pretos e mulatos dos rolezinhos que ousavam frequentar o mesmo shopping center que seus filhos mostrou o quanto de preconceito e hipocrisia há na nossa “democracia racial”. Os rolezinhos eram tão somente uma apropriação de valores burgueses por uma classe social de proletários que tinha tido seu poder aquisitivo melhorado. Os burgueses julgavam, no entanto, que essa apropriação era, na verdade, um roubo. Mandaram a polícia bater nos meninos.
Foi também um momento tragicômico para os estamentos superiores da nossa pirâmide social. Juízes dando liminares que cassavam o direito constitucional de ir e vir. Personalidades constrangidas em mostrar todo o seu preconceito social, mas considerando os rolezinhos um perigo. E os garotos só a fim de dançar funk ostentação na praça de alimentação.
Lembrando daquele povo branco nas ruas em junho de 2013 pleiteando escolas e hospitais públicos “padrão FIFA”, perguntei-me: estiveram realmente dispostos a dividir a mesma enfermaria com o porteiro dos seus condomínios? Seus filhos iriam dividir a mesma classe escolar do filho da diarista no advento do tal “padrão FIFA” público e para todos?
Com a reação aos rolezinhos eles responderam: não.
Daí até a Copa, a violência explodiu. Se havia policiais suficientes para sufocar os rolezinhos, pareciam insuficientes e impotentes para controlar os revoltosos cashmeres e sua tropa de choque – os black blocs.
“Não vai ter Copa”.
Não era uma Copa, era uma revolução, tratava-se de derrubar o governo.
Uma campanha de desconstrução conduzida massivamente pela grande mídia tornou-se um fenômeno sociológico. Foi capaz de momentaneamente modificar a auto-imagem do brasileiro. O brasileiro passou de um povo alegre, hospitaleiro, festeiro e laissez faire para um povo capaz de ameaçar turistas estrangeiros como fossemos um terrorista do oriente médio. Carrancudo a ponto de não querer participar da própria festa pela qual esperou mais de meio século. Oportunista a ponto de agredir um símbolo como a seleção brasileira de futebol para chamar atenção para suas reivindicações salariais e intolerante e violento a ponto de linchar meninos carentes e senhoras emocionalmente desajustadas.
"Ei Dilma, vai tomar no cu".
Os jogos, no entanto, foram a primeira derrota dos revoltosos cashmeres. Foram um sucesso de organização e de público. Mas a pressão já havia feito seu estrago no moral da nossa seleção.
Ainda assim, nos setores VIPs dos estádios, lá estavam os revoltosos cashmeres ofendendo a presidente com termos de baixo calão. Mostrando ao mundo que formavam hordas bárbaras em meio a um povo que festejava nas ruas o congraçamento dos povos em torno do esporte.
"Fora Dilma, e leve o PT junto".
Acabada a Copa, a campanha eleitoral foi a grande batalha da Revolta Cashmere. Nela, as forças se dividiram literalmente como dois exércitos em guerra. O PT de um dos lados, todos os demais do outro. E lá estava o revoltoso cashmere exercendo o preconceito contra os pobres que ele chamava, na sua ignorância, de nordestinos. Pleiteando a divisão do Brasil em dois países antagônicos – o do norte e o do sul. O preconceito desavergonhado e a intimidação mais grosseira elevados à condição de manifestação política. Mas toda a violência contida no “Fora Dilma, e leve o PT junto” não bastou. Deu Dilma, deu PT.
"Vai pra Cuba".
Inconformado, o filósofo cashmere ainda ameaçava:
“Precisamos de uma militância de secessão: que os bolivarianos durmam inseguros com o dia seguinte, porque metade do país já sabe que eles não são de confiança. Que fique claro que a batalha foi ganha pelos bolivarianos, mas, a guerra acabou de começar, e começou bem” - Luis Felipe Pondé em “Diálogo ou secessão?”.
E o revoltoso cashmere foi novamente às ruas, agora para pedir impeachment e a volta da ditadura militar. Chegou ao ridículo de em uma petição em inglês pedir à Casa Branca uma intervenção americana. Sonhava ser salvo pela cavalaria do General Custer.
Em sua batalha final, já uma luta de resistência, aos grupelhos, dirigiu-se à Avenida Paulista. Mas, agora, eram liderados por malucos decadentes. E no último e melancólico ato da Revolta Cashmere, seu eleito faltou à passeata que ele mesmo convocara – havia ido para a praia. Os revoltosos cashmeres ficaram esperando Godot.
Por fim, mais uma série de derrotas simbólicas. O revoltoso cashmere ainda teve de ver seu cavaleiro vingador politicamente inviabilizado aposentar se precocemente e a pedido, mas com vencimentos integrais e apartamento em Miami. E vê aqueles a quem admira e adula, os diretores de grandes empresas de engenharia, seu símbolo de ascensão profissional, serem presos como corruptores na Operação Lava Jato.
Antes, vira seu Midas-X falir. Fechando o ano, ouviu Obama falar para Fidel Castro: “Somos todos americanos”. Obama foi para Cuba.
E assim, termina 2014 - o ano da Revolta Cashmere. Um ano em que fomos apresentados a nossa face mais hipócrita, preconceituosa, violenta e intolerante. Donde o brasileiro cordial? Foi um ano para confrontarmos nossos mitos.
Começaremos 2015, ansiando por nuvens escuras e tempestades. Até porque, ao lado progressista desta nação em construção, os enfrentamentos à Revolta Cashmere nos ensinaram a não temer tempos feios ou gente cheirosa.
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