AGENDA CULTURAL

28.12.14

Viver sem estorvar os outros

Hélio Consolaro*

Élvis Presley não morreu, Cristo não morreu na cruz, escapou, assim os fãs dizem de seus profetas e ídolos. Lampião (o Virgulino) era veado.

No livro "A casca da serpente", de José Jacinto Veiga (o J.J. Veiga ou José J. Veiga - Jacinto não pegava bem), Antônio Conselheiro (Antônio Vicente Mendes Maciel) também não morreu. Ressuscitou? Escapou? Mas a história não diz que os soldados federais desenterraram e morto mesmo deceparam a cabeça dele? Leia o livro e saberá, caro leitor. E faço-lhe mais uma provocação: que tem a ver Antônio Conselheiro com a serpente?

Essas duas semanas – Natal e Ano-Novo – desde meus tempos de professor – foram as mais preguiçosas do ano. O que mais faço nelas é ler livros encalhados em minha biblioteca à espera de meus olhos.

“A casca da serpente” era um livro fotocopiado, encadernado em espiral, nem me lembro como veio parar na minha estante. Cheguei à página 75, pulou para a 85. Pensei: “Agora que eu estava gostando da leitura, encontro um abismo, como passar para o lado de lá?”.

Nada de texto digital na internet. Até a edição de papel estava esgotada. Apelei para o presidente da Academia Araçatubense de Letras que é doutor em letras e também gosta de J.J. Veiga. Disquei o número certo. Por telefone, determinou:

- Venha buscar!

Quando cheguei em casa, com o livro verdadeiro nas mãos, me senti imbecil. As páginas estavam todas lá na fotocópia do livro, houvera apenas um erro de encadernação.  

Na verdade, o que me fez dividir a experiência com meus leitores foi um trecho muito lindo escrito por J.J. Veiga no livro sobre o fato de carregar armas:

Mas quem anda desarmado entre guerreiros nem sempre leva desvantagem. Armamento é assim, sempre foi: serventia para uns, desvalia para outros. Quem de outros recursos até mais cortantes e menos sujeitos a superação, a enguiço em momento crítico, a retumbos pela culatra. E mais. Quem carrega arma pra onde vai, parece que a presença dela, o peso, o incômodo mesmo, acabam dando ao portador alguma certeza de que está garantido e forrado, de que está por cima. E mais: essa certeza parece que dá na pessoa que carrega arma uma coceira, uma vontade de recorrer à arama ao menor pretexto, como para justificar a posse dela – e se não é para usar, por que carrego isso? Já as pessoas que nesta vida só querem viver sem estorvar a vida dos outros, essas não têm fascinação pelo carreto de armas. Elas acreditam e confiam mais na inteligência e na parlamentação.

Nunca havia lido texto mais eloquente a favor do desarmamento do que esse. “A casca da serpente” vale a pena ser lido. Não se trata de propaganda, porque não há exemplares à venda, que é uma pena.



*Consolaro é professor, jornalista e escritor. Secretário Municipal de Cultura de Araçatuba-SP 

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