Existe, em quase todas as regiões do país, uma verdadeira
fúria contra a nudez da terra, uma fúria por cobri-la, escondê-la, como se uma
coisa imoral
por Menalton Braff — publicado 19/02/2015 - Carta Capital
Há bem pouco tempo começaram as chuvas e tivemos a
oportunidade de assistir novamente àqueles verdadeiros caudais pelas sarjetas da
cidade. As bocas-de-lobo não têm garganta suficiente para engolir o volume de
água que desce das ladeiras. Primeiro, porque há muita gente jogando lixo em
sua volta, e o lixo acaba tragado pelas bocas-de-lobo, que não fazem seleção
daquilo que engolem. Mas não é só: cada vez mais, e todo mundo sabe disso,
existe menos terra descoberta que absorva a água da chuva. Cimento e chuva, eis
a solução para se obterem belas piscinas em nossas ruas.
As pessoas parecem possuídas pelo espírito do cimento.
Existe, em quase todas as regiões do país, uma verdadeira fúria contra a nudez
da terra, uma fúria por cobri-la, escondê-la, como se uma coisa imoral. Porque
a nudez, segundo alguns especialistas no assunto, é imoral. Quando você sai do
supermercado, a uma temperatura entre vinte e cinco e trinta graus, e entra no
carro, cujo interior pode atingir cinquenta graus, o choque térmico pode ser
bem perigoso. Nessa hora, você não sente saudade de uma sombra, de uma árvore,
de qualquer coisa que amenize a agressividade do sol?
Tentando entender as razões das pessoas, fui consultar meu
compadre Adamastor (batizei-lhe o filho mais novo recentemente), pois ele é que
entende de psicologia social, formado como foi no Cabo das Tormentas.
O ser humano, perguntou-me ele, não simboliza tudo? Todo
nosso comportamento não tem uma forte carga simbólica? Como eu concordasse, nem
tinha outro jeito, ele continuou. Muito professoral para meu gosto, mas com a
segurança de quem conhece profundamente o assunto.
O cimento é urbano, ele disse, marca de civilização, de
progresso. O cimento não suja, pode ser lavado. A terra é rural, lembra tudo
que é primitivo. Na terra é que as crianças se sujam durante as brincadeiras. A
terra vira lodo quando chove, emporcalha os pés da gente. Quando as pessoas
cobrem tudo de cimento, estão escondendo o avô, que sofria com os bichos-de-pé;
a avó, com as narinas pretas da fumaça de querosene. Estão negando suas
origens.
O que fica difícil de entender é que essa ânsia de assepsia
e o desejo de esconder os matutos de que nos originamos, não tenham
correspondência no trato com o lixo, com nossos restos jogados até com certo
prazer nas praças e ruas. Questionado sobre isso, meu compadre franziu o
sobrolho, engasgou-se e não conseguiu responder
*Menalton Braff é escritor
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