AGENDA CULTURAL

9.10.16

Os desígnios de Deus


Gabriel Araújo dos Santos*
bieoprosador@gmail.com

A morada de Sá Geraldina era uma enormidade – assim me parecia.


Viúva, sem filhos, tinha por companhia Das Graças, solteira de meia idade e de bom proceder, tão religiosa quanto a patroa.
Não se cansavam da lida, todos os dias no preparo de quitandas e doces; e à noite, no regresso das rezas na igreja, dedicavam-se a fazer rendas nos bilros. 


Sabedoras de minha preparação para a primeira comunhão, deram também de se intrometer no assunto, e apesar de eu ter dito que estava em apuros de serviços, e que meu pai já mexera no caso com Sá Mariquinha, convenceram-me prometer a elas fazer presença em sua casa ali pelas cinco da tarde daquele dia, pois tinham muito a me dizer sobre os desígnios de Deus. 


Na hora combinada eu estava pisando as tábuas do alvejado e bem cuidado assoalho da casa ali na esquina da Rua da Fontinha com o Morro da Tegina, que demandava os caminhos do Santo Cruzeiro, indo para a Chapada. 


Uma misturança de muitos cheiros principiou por deixar meu espírito arredio e medroso, sensação que ia tomando corpo à medida que meus olhos davam com os inúmeros e variados quadros que pendiam das paredes da sala dita de visitas, que na verdade fora transformada numa espécie de capela, pois no centro, sempre alumiada pela chama de um bem acabado candeeiro, eram veneradas umas tantas imagens, sobressaindo a de Nossa Senhora da Boa Morte, alumiada por duas imensas velas, as chamas numa lerdeza de esmorecer, que se refletiam no quadro com a estampa representativa da “Fuga para o Egito”. 


Um enorme sofá de palhinha, verniz preto, emprestava um tom funéreo ao ambiente carregado do odor das velas, das flores e de incenso. 


De uma das paredes pendia um carrancudo quadro do inferno, onde se viam retratadas espetaculares cenas dos pecadores em direção ao fogo eterno.


Os segundos se arrastavam, e a vontade era sair correndo, tais os gritos de horror que me chegavam aos ouvidos, partidos daquelas infelizes criaturas atiradas no mundo dos espíritos das trevas. “Não, esta não é a casa de Sá Geraldina!”, pensava comigo, a imaginar que eu estivesse tendo uma visão do que iria me acontecer no dia de minha morte. 


Todo paralisado, senti alguém me tocar o ombro. 


Não tive forças para gritar. Quase morri.
Era Das Graças, que de propósito aproximara-se de soslaio, pé ante pé, a avisar-me que Sá Geraldina logo viria, e que me sentasse no sofá e aguardasse um pouco. 


Apresentou-me um prato de ágate com algumas brevidades, para que eu comesse. Tirei apenas uma, e ela tornou à cozinha. 


Como um autômato, sentei-me no sofá, a brevidade na mão.


Quando vi, a quitanda, tanto a apertei, esfarinhou-se toda.


Tinha os olhos fixos em um dos quadros do inferno, e era naquela sala que Sá Geraldina iria dar início à minha catequese, o ambiente propício para falar do sagrado e me levar à santificação. 


Séria, de pouco sorrir, assomou à sala.
De baixa estatura, gorducha, cabelos em coque, rosto redondo e bochechas avantajadas; pele rosada que parecia mostrar o sangue. Olhos azuis, morteiros, aparência de peixe morto, a contrastar com o longo vestido preto, mangas três quartos, sem decote e comprido a cobrir-lhe os pés, a atiçar ainda mais o medo que me dominava. 


Eu rezava e rezava, só no meu íntimo, implorando às almas que me tirassem dali.
Em dado momento tomei coragem e pedi para ir lá dentro, na cozinha, lavar as mãos que eu sujara com brevidade. Quem sabe entre o ir e vir eu acharia uma saída para me livrar daquela enrascada. 


Ainda bem que Das Graças me ofereceu café daqueles bem ralinhos, próprios das casas de gente já de certa idade. Tomei uma caneca e repeti. Depois ainda comi duas ou três brevidades. Tudo para ganhar tempo. Não senti o gosto de nada, e só pensava em ir embora.
Ao retornar à sala, e antes que Sá Geraldina falasse qualquer coisa, de pronto tomei a iniciativa da conversa e disparei a falar, enchendo-lhe a cabeça de gravetos – modo de dizer do povo do lugar. 


Desculpei-me de todos os modos, a dizer que, ao chegar a casa, dera com meu pai – coitado de papai! – tontinho de dor de cabeça, deitado lá na cama, o quarto todo escuro, e que me pedira para ir à casa do Senhor Plácido pegar uma garrafada indicada para o incômodo que o acometia. Que eu só tinha passado ali para justificar minha ausência, e que meu pai é que me mandara assim fazer. 


A boa senhora condoeu-se toda, a se desculpar de que não poderia ir ver meu pai em virtude do adiantado das horas, que ainda tinha o banho e o jantar pela frente, para depois ir à igreja. Mas quem sabe depois da reza passaria por lá...


Agora, quem estava com dor de cabeça e de consciência era eu, e no caminho para casa eu tomava cuidado para não tropeçar e cair, pois o meu pecado era grande, e na queda iria parar no inferno! 


Perdi até o apetite, que na minha idade era demais. 


Naquele cair de tarde, meus familiares não entenderam eu ter comido tão pouco; e estranharam, também, meu modo calado, contemplativo, tão tagarela eu era.
Contemplativo, nada! Eu não via o tempo passar, aflito para chegar a noite e a hora de dormir.


Logo haver beliscado o prato de comida saí a andar pelo quintal, que era uma enormidade – pelo menos assim eu o via. Divisando com outro quintal, também de descomunal tamanho, havia um pé de gameleira, aquilo de centenária, as grossas raízes se alastrando por toda parte. De repente era noite, e figuras medonhas interceptaram-me o caminho, encurralando-me junto à árvore mal assombrada. Rabos e chifres enormes, gargalhavam e gargalhavam, que agora, sim, o inferno se alegraria, que mais uma alma conseguiram arrebatar. A alma de um menino mentiroso e ardiloso, que pôs o pai de cama por uma coisa de nada! A gameleira, até então frondosa árvore, tomara a forma de um tinhoso de muitas pernas, de muitas caras e muitos braços, curvados chifres e olhos esbugalhados. Gritei, mas de nada valeu. A custo, peguei com a Virgem, e ao pronunciar-lhe o nome, tudo desanuviou.
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Já era de manhãzinha.
De pé, ao lado da minha cama meu pai me estendia a mão, a querer saber a razão de meus gritos, o porquê de tamanha aflição.


Foi quando bateram à porta da rua, e ele foi atender.


“Ai, meu Deus, é ela, Sá Geraldina!”, pensei, morrendo de medo.


Era Das Graças, que em prantos dizia ter Sá Geraldina sofrido um mal súbito. Morreu!


Desígnios de Deus...


*Gabriel Araújo dos Santos, escritor, com vários livros publicados, mora em Campinas-SP.

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