Bié, O Prosador*
Dos
três estrangeiros que havia na cidade, Seu Nagib era um deles. Já
passava dos setenta anos, mas bem disposto, forte, tal um touro. Sempre
de terno e gravata, além do costumeiro colete, a gôndola do relógio de bolso
reinando absoluta.
Teve
três filhos, homens. Todos fizeram avançados estudos na capital, e por lá
ficaram. Sua
venda de ferragens e armarinhos; secos e molhados situava numa das ruas
principais bem ali no que chamávamos de Largo da Igreja.
O
estabelecimento, de muitas portas, daquelas de duas bandas que se abrem em par,
via-se em constante ebulição, pois até ferraduras ali se vendiam, e os animais
eram ferrados no pátio dos fundos da propriedade.
Casou-se
com moça do lugar, e parecia um dos nossos, tal a sua participação nos
acontecidos do cotidiano da cidade. Havia um
senão. Era,
como se dizia, cristão ortodoxo, e não frequentava nenhuma liturgia na igreja
local, cuja presença formal se restringia aos eventos ditos sociais, casamentos
e passagens fúnebres.
De
tempos em tempos, viajava à capital, onde, diziam, participava dos ritos da
religião de seu povo. Mas não era
motivo para a inexistência de um bom relacionamento com o vigário, cujas obras
sociais e religiosas contavam sempre com as generosas contribuições do
respeitável libanês.
Entretanto, no sermão da “Descida da Cruz”, o Largo da Igreja lotado de
fiéis, o vigário desandou em terríveis ataques ao “ganancioso do sangue de
Cristo”, referindo-se com todas as letras ao comunicativo negociante.
Tudo porque
na Sexta-Feira Santa ele atendera alguns roceiros que vieram de grotas
distantes para o rito sagrado. E ali na venda, apenas meia porta entreaberta -
cerrada, como se costuma dizer - fizeram umas compras de nada, e daí a pouco
Seu Nagib já se recolhia, feliz pelo atendimento àquelas simplórias e humildes
criaturas.
Apesar do
pesado das palavras, Seu Nagib não mudou de cara. Continuou na lida como se
nada tivesse acontecido, mas trazia consigo uma tristeza, a de ter perdido a
amizade do vigário.
Percebeu, com
o correr dos dias, que os freguês rareavam, mas não a ponto de causar um baque
danoso às finanças do estabelecimento.
Num domingo de
importante celebração litúrgica os fiéis se surpreenderam com a sua presença
inesperada à missa daquele dia.
À hora do
sermão, no momento em que o vigário vinha do altar em direção ao púlpito, que
ficava num dos lados da nave da igreja, Seu Nagib se adiantou e escalou as
escadinhas em direção ao que também poderíamos chamar de parlatório. Abriu a
portinhola, entrou e a fechou de novo com o trinco.
A igreja como
que levitava, e o vigário, tomado de surpresa, estacou no meio do caminho. Perdeu a cor e
a fala, e inventando tosse e engolindo seco ficou a esperar pelo que viria
após.
- Esta aqui é
a Bíblia do meu rito, a Bíblia da religião do meu povo, a Bíblia que todos nós
podemos ler. Não é a que os católicos, apostólicos e romanos estão proibidos de
ler, que pode levar as pessoas à loucura. Essa também nos leva à loucura, mas à
loucura de Deus, não à loucura dos homens, homens como o Sr. Vigário, que
parece nunca ter tido acesso à passagem do Evangelho em que o samaritano,
originário de um povo odiado e menosprezado, foi quem acudiu o viajante
assaltado e maltratado quase à morte pelos ladrões, enquanto um levita e também
um sacerdote passaram à larga, eis que era dia de sábado. Digo isso, Senhor
Vigário, porque vi naqueles roceiros a figura do viajante. O lucro que obtive
na transação daquela sexta-feira não chegou a um centésimo do que apuro no meu
cotidiano. Foram coisas simples e de insignificante valor que eles compraram,
uns sortidos de pouca monta: querosene e creolina para a cura dos machucados de
suas criações. Sal para o tempero de suas refeições, e macarrão para os almoços
dos domingos festivos. Não pense que a sua fala não me trouxe angústia. O
Senhor podia ter-se alongado mais e mais, porém nunca mencionar que dispensava
a minha amizade. Para o meu povo, a amizade é um dom de Deus. De que vale a
flauta, por mais recursos de que disponha, se não puder contar com o sopro do
músico? Assim, a amizade é para o homem como o sopro é para a flauta e os dedos
são para a cítara. Considero-me, de fato, um homem de fortuna, e a minha maior
fortuna são os amigos. O que faria de minha fortuna, se de amigos eu não
dispusesse? Por tudo isso, confesso-lhe, Senhor Vigário, lamento perder a sua
amizade, mas o meu coração permanece aberto e a minha estima pelo Senhor
continuará viva até os fins de meus dias.
Fechou a
Bíblia, cerrou os olhos e orou contrito. O
vigário, ainda imobilizado por tudo que ouvira, a passos lentos e trôpegos
retornou ao altar.
Após a
consagração, virou-se para a assistência e falou:
- Deste
lugar em que estou e até onde o Senhor Nagib se encontra há uma distância
razoável. Daí até a mureta que divide o átrio sagrado do restante da igreja é a
metade do caminho. Que cada um de nós dois faça o seu trajeto, e o nosso
encontro se dará ali, na mureta onde os fiéis se ajoelham para receber a
comunhão.
O vigário
principiou por descer as escadas do altar, enquanto Seu Nagib ia pedindo
passagem por entre os fiéis. Enfim,
viram-se frente a frente!
Veio a
cena derradeira quando o vigário, acolitado pelo sacristão, e pegando uma
hóstia do Cibório, elevou-a como mandava o rito, e diz:
- Senhor
Nagib, peço-lhe que aceite a minha amizade em nome de Cristo, cujo corpo agora
lhe ofereço.
Era o
momento em que todos os fiéis se achavam ajoelhados em sinal de respeito ao
Corpo de Deus.
Os
fiéis, como tocados por um só e mesmo pensamento, ergueram-se em bloco, e num
silêncio respeitoso e benzendo-se repetidas vezes, presenciaram, caso inédito
até então, a Primeira Comunhão – no rito romano - do próspero e prestimoso
libanês ortodoxo Nagib Bahameb.
Por
muito tempo ainda a cidade se perguntaria: quem converteu quem?
*Gabriel Araújo dos Santos, escritor, Campinas
Um comentário:
O comentário que me cabe é mandar o meu sincero e saudoso abraço a este homem, o Consa, de múltiplas visões, em que sobressai a visão de SERVIR|. Obrigado.
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