Ouro, miséria e foguetes por Natalia Viana
Ao norte, o Brasil faz fronteira com a França. Aquele pedaço compartilhado de floresta me vem à mente enquanto os presidentes dos dois países se ofendem, justamente, por causa da preservação da Amazônia. A Guiana Francesa, última colônia ainda existente na América do Sul (com exceção das Ilhas Malvinas, claro), foi o destino final de uma viagem que fiz com meu marido em dezembro do ano passado pelas três Guianas – “terra de muitos rios” – que foram formadas pelos senhores coloniais da França, Inglaterra e Holanda a partir do século 17. Ao longo de 23 dias, atravessamos as Guianas da única maneira que se pode, trocando entre ônibus decadentes, pequenas vans apertadas, balsas, canoas e barquinhos a motor. Não há estradas para o interior da floresta, e as poucas que existem mal conectam os trechos do litoral onde estão as três capitais da Guiana, Suriname e Guiana Francesa.
Partimos de Boa Vista, capital de Roraima, para a fronteira com a Guiana, país que se tornou independente do Reino Unido apenas em 1966, e que guarda em quase tudo a marca colonial – da pobreza e falta de infraestrutura aos partidos dominantes, um liderado pelos descendentes de escravos de ex-colônias inglesas na África e o outro, por descendentes de indianos. Eu, sem meu caderninho de repórter ou gravador, absolutamente de férias, fui ouvindo e guardando tantas histórias na memória, apenas. Como se aprende na estrada.
Os 560 quilômetros que separam Lethem, na fronteira com o Brasil, da capital Georgetown são vencidos por uma esburacada estrada de terra margeada por mata fechada, cuidadosamente guardada por “checkpoints” policiais a cada trecho. Para atravessar o país, é preciso usar uma das precárias vans que transportam até 15 passageiros cada, a maioria trabalhadores que buscam oportunidades no vibrante comércio da fronteira com o Brasil, turbinado por produtos made in China onde as famílias de Boa Vista vão comprar.
Em grande parte o país é formado por reservas florestais financiadas pela União Europeia, numa tentativa de resguardar as riquezas da Amazônia, sempre almejadas seja qual for a história do país que se formou em torno dela. Embora preservada e prístina em diversos trechos, ao nos aproximarmos da capital pudemos ver o rastro da atividade que parece ser um constante problema em todas as Guianas: a mineração ilegal.
São clareiras e clareiras cavadas na floresta, formando uma geografia que descombina com todo o resto, mais parece vinda da lua, esburacada; e ao lado de cada buraco e quinhão de terra marrom, uma barraquinha preta ou azul, de lona, onde gente pobre, filhos de países que sempre os trataram com desprezo em relação às elites inventadas pelos europeus, tentam fazer riqueza.
A mineração artesanal e ilegal foi uma constante na viagem, e boa parte dela é feita por brasileiros que invadem os países vizinhos pelas porosas fronteiras amazônicas. Ainda em Boa vista, conheci uma brasileira que, quando jovem, decidiu aventurar-se em um grande garimpo de Serra Pelada, no sul do Pará. Naquela época, mulheres não eram toleradas dentro do garimpo. Para conseguir o seu pedaço de terra para peneirar, ela assumiu a identidade de um minerador que havia morrido por briga de faca; e passou anos fingindo ser um transexual, buscando farelos de ouro e cozinhando para os demais. “Tudo o que eu ganhei eu gastei”, contou. Sua história saiu no jornal, saiu até na Globo, e hoje ela tem um barzinho à beira do Rio Branco, que banha a capital de Roraima.
Conheci ainda outra brasileira corajosa, que encarou as sacolejantes 28 horas de van junto conosco, sem falar uma palavra de inglês e portando apenas um papelzinho com o nome da pessoa que a acolheria, o “brasileiro”, empresário que tem vans e sabe-se lá que outros comércios, e que havia pago a sua passagem para servir à comunidade de brasileiros que se aventuram no país vizinho em busca de riqueza. Ela já era uma senhora, embora enxuta e bonita, e não me contou o que lhe foi prometido, nem que trabalho fora contratada pra fazer. Fiquei aliviada ao saber, meses depois, que ela tinha retornado ao Brasil sã e salva.
No Suriname, os 650 mil habitantes ainda falam holandês e a população é uma mistureba de descendentes de escravizados, indonésios e chineses: outro povo inventado. Fiquei espantada com as dezenas de lojinhas que anunciam, em bom português “compra-se ouro”. Elas ficam enfileiradinhas um pouco à margem da bonita capital colonial, Paramaribo, com suas construções de madeira bem preservadas; muitas trazem, ainda, bandeiras do Brasil. Um mercado que recebe de braços abertos as incursões dos brasileiros que se aventuram pela Amazônia dos outros para garimpar.
Mas foi na Guiana Francesa que o problema dos mineradores ilegais vindos do Brasil se materializou como dor de cabeça real, com selo oficial. Fui barrada na fronteira, embora estivesse entrando em território francês, país que não exige vistos para brasileiros. “Não aceitamos brasileiros sem visto”, me disse o policial francês, explicando que a medida extraordinária existe justamente para tentar frear os brasileiros que invadem a floresta em busca de ouro. O desconhecimento do problema fronteiriço me levou a passar uma tarde em uma delegacia de madeira e pagar uma polpuda multa.
Mais tarde, tive a oportunidade de conversar com outros policiais e fiscais ambientais franceses, enviados da metrópole colonial para percorrer de barco os rios amazônicos em busca de encontrar, prender, ou apenas assustar os mineradores brasileiros. “Não há muito o que se possa fazer”, me disse um deles. “Porque quando eles vêem que estamos chegando eles abandonam os acampamentos e cruzam para o Suriname. Na fronteira, não podemos fazer nada. Só nos resta recolher o que conseguimos e voltar outro dia”. Ele me dizia isso na varanda de um predinho charmoso, à beira da praia, que nada lembrava as construções de madeira que vimos nas demais Guianas; poderíamos estar muito bem na Riviera Francesa, com gigantescos supermercados Carrefours cheios de vinhos rosé, as brasseries e patisseries onde tudo é comprado em euro e, sim, os cidadãos franceses passeiam com as baguetes debaixo do braço como se estivessem no quintal de casa. Apenas três coisas nos lembram que não estamos na França: o inconfundível clima amazônico; a estação espacial europeia, de onde todos os países incluindo Russia lançam seus foguetes; e a existência da Legião Estrangeira, corpo mercenário do Exército Francês à qual já dediquei mais de uma reportagem – mas essa é outra história. E eu estava de férias, afinal.
Na fronteira entre a França e o Brasil, há uma ponte binacional que chegou a ser inaugurada em 2017, mas que ninguém usa, porque os franceses cobram mais de 400 euros de seguro obrigatório para quem quer entrar de carro no seu território, além do visto. Dá pra ver às moscas a majestosa construção, financiada por quase R$ 70 milhões e paga pelos dois países, no caminho para o porto onde todo mundo prefere alugar uma voadeira por R$ 15 para chegar até o Oiapoque, no Brasil.
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