Numa certa altura dos anos 2000 entrevistei o prefeito de
importante cidade do interior paulista. Na época, eu era pesquisador-cientifico
do Instituto de Saúde de São Paulo, o IS. Lá, vínhamos de discutir e investigar
numerosas situações de privação social, drogadição, trabalho infanto-juvenil e
tráfico, enfim, coisas a que pesquisadores sociais estão acostumados, porém – surpreendentemente – não a sociedade em geral. Anos depois iríamos ajudar a
construir o Tribunal Popular, que discutiu crimes do Estado brasileiro contra
populações indígenas, quilombolas e outros povos da floresta; a tortura, o
encarceramento em massa e o genocídio contra a população pobre, preta e
periférica.
Por essa mesma época, e durante algum tempo, acompanhei um
ex-detento em andanças pela periferia de São Paulo, na região onde ele e sua
família moravam, e pude (com muitos sobressaltos!) perceber a dura realidade
cotidiana daqueles que habitam os bairros populares nas bermas distantes.
Observei o movimento da polícia e o dos traficantes, conversei com ladrões e
arrombadores (o senhor acredita na inocência dos bancos?), partilhei mesa de
bar com poetas e literatos populares, tive de ouvir declamações intermináveis e
novas músicas compostas por compositores que jamais teriam suas canções
divulgadas pela mídia, me acerquei de cineclubistas, livreiros, colecionadores
de ritmos antigos – rumbas, tangos, boleros ou rock primitivos – e pude
observar, ao lado deste impressionante ritmo de vida, como a vida dessas
pessoas é marcada pela repressão. E de como a vida incerta das pessoas pobres
segue seu rumo, sem depender muito do Estado e de suas políticas “sociais”.
Parte dessas andanças eu as registrei num artigo publicado no Boletim do Instituto de
Saúde, de que gosto muito.[1]
Aliás, todo esse número do BIS foi dedicado a temas de violência e saúde.
Voltando ao prefeito. Na ocasião em que a conversa se deu,
meu interesse estava voltado para o comércio de drogas ilegais e ainda a
relação local com as forças policiais. Estive em entrevista ao prefeito por
conta dos nossos projetos e porque mantínhamos forte interlocução com os
escritórios regionais e com os sistemas locais de saúde. Poucos desses
pré-projetos prosperaram e, todavia, restou um enorme aprendizado das coisas da
vida, dessas que não cabem nem nunca caberão num artigo científico ou numa
dissertação ou tese.
A conversa ia num bom ritmo - saúde, educação, políticas
afirmativas -, o prefeito esse tinha excelente raciocínio e capacidade ímpar de
explanar suas políticas, demonstrando excelente apreensão das coisas de sua
cidade. E então me ocorreu perguntar: prefeito, quem vende maconha aqui nesta
cidade? quem controla esse comércio, o senhor tem ideia? A conversa embatucou
durante alguns minutos ao cabo dos quais ele respondeu – alguém deve vender, eu
imagino, não é coisa da qual eu passe perto nem ninguém que conheça. Não é
coisa que tenha importância para a cidade, acredito nisso porque essa questão
do comércio nunca foi um problema colocado em discussão pelos movimentos ou
faça parte das reivindicações da população, nem mesmo na periferia.
Achei tudo muito simples. Mas o que o prefeito informava não
cabia no conjunto das observações que antes eu havia feito na periferia de SP.
A saber, o do extenso, sinuoso e invisibilizado conúbio entre polícia e
tráfico, a vacuidade das acusações formais, o artificialismo dos processos
judiciais e a detenção exageradamente elevada de suspeitos, assuntos já por
demais debatidos no Brasil na imprensa especialista e fora dela. E se o
prefeito não tinha nenhuma ideia deste comércio então podia ser que não tivesse
também nenhuma ideia de como a polícia atuava. E me chamou a atenção justamente
porque a população daquela cidade historicamente apresenta altos percentuais de
negros e pardos na sua composição demográfica, um dos maiores de todo o
interior. Por este motivo, pareceu que seria relevante saber das forças
policiais na cidade. Porque poderia ocorrer, e de fato eu não sabia, de as
operações policiais serem definidas em conjunto, comando militar e município. E
estas foram as perguntas: o senhor participa da vida da Polícia Militar na
cidade, tem contato formal e regular com os comandantes? O senhor é consultado
quando há troca de comando? O senhor é avisado ou existe deliberação conjunta
quando é realizada alguma operação da PM, uma blitz, por exemplo?
Eu estava diante do chefe do poder civil. Civil, civis,
civitatis, civilidade, civilização. A cidade, a polis. Prefeitura,
municipalidade, múnus, o que tem mandato ou o que tem o dever de conduzir os
assuntos públicos visando ao bem de todos os cidadãos, com base na lei, o
eleito pela maioria para governar a cidade. Então ele me diz não, nunca sou
consultado quando há troca de comando nem a prefeitura é avisada quando vai
ocorrer alguma operação. Blitz também não, já fiquei detido numa delas. As
relações são protocolares. Numa única ocasião veio me visitar um capitão pm que
era relações públicas e só. Muito simpático o relações públicas.
Manu militari. Ali, num rasgo, ficou claro que passadas duas
décadas desde a ditadura o país mantinha-se cindido: poder civil e poder
militar. Encostado num o poder do outro sobre os cidadãos, um tocando
cotidianos assuntos triviais enquanto o outro decidindo sobre a vida e a morte.
No limite. A mesma PM que restou intocada dos dispositivos ditatoriais, aquilo
que Ulisses Guimarães certa vez chamou de entulho, esses dispositivos
construídos com a finalidade de auxiliar na repressão aos opositores políticos,
ali, naquela entrevista, ela me aparecia em sua forma acabada: a do poder paralelo.
E se antes, lá nos anos 1970, visava a reprimir ou a eliminar o inimigo
interno, o comunista, o terrorista, o inimigo da pátria e da religião, agora o
inimigo interno se havia transmudado: é o preto, o pobre, o periférico, o
ladrão comum, o batedor de carteira, e eventualmente o assaltante de banco ou o
quadrilheiro de caixas eletrônicos.
Assim se passaram dez anos, vinte anos. Agora, passados
golpes e contragolpes, já existem outros inimigos internos: os estudantes
secundaristas, os estudantes das universidades públicas, os professores das
universidades públicas, as mulheres; homossexuais, indígenas, quilombolas; os
invasores de terras (não os de terno e gravata), os defensores dos invasores de
terras, os defensores da terra e das águas, os defensores dos bichos; e ainda
os que defendem a soberania nacional. Todos condenados, estamos todos
condenados. Porque somos o Outro. O povo. Se diz hoje o que se dizia antes:
quem trabalha não tem tempo para balbúrdia; quem não deve não teme; ora e
trabalha, deus te protegerá e quem assim procede colherá bons frutos; descansa,
irmão, e não cobices mais do que podes ter; cumpra teu dever.
Agora essa polícia militarizada, treinada e fortemente
armada quer mais, ela pode mais. Tem representantes em todas as instâncias do
parlamento que amplificam demandas nada civilizadas, pois se trata da
re-emergência do Nefasto: o fascismo bruto está de volta. E querem o poder,
eles sabem e há quem queira, e esses que querem não aparecem nesta condição.
Todavia, reivindicam e chantageiam, como se pudesse fazer parte da cidade e do
logos a opinião armada.
Momo, finalmente, reina!
*Carlos Botazzo, 74 anos, São Paulo. Professor universitário. Escrito em 20/02/2020.
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