AGENDA CULTURAL

22.2.20

O carnaval dos fardados - Carlos Botazzo


Numa certa altura dos anos 2000 entrevistei o prefeito de importante cidade do interior paulista. Na época, eu era pesquisador-cientifico do Instituto de Saúde de São Paulo, o IS. Lá, vínhamos de discutir e investigar numerosas situações de privação social, drogadição, trabalho infanto-juvenil e tráfico, enfim, coisas a que pesquisadores sociais estão acostumados, porém – surpreendentemente – não a sociedade em geral. Anos depois iríamos ajudar a construir o Tribunal Popular, que discutiu crimes do Estado brasileiro contra populações indígenas, quilombolas e outros povos da floresta; a tortura, o encarceramento em massa e o genocídio contra a população pobre, preta e periférica.

Por essa mesma época, e durante algum tempo, acompanhei um ex-detento em andanças pela periferia de São Paulo, na região onde ele e sua família moravam, e pude (com muitos sobressaltos!) perceber a dura realidade cotidiana daqueles que habitam os bairros populares nas bermas distantes. Observei o movimento da polícia e o dos traficantes, conversei com ladrões e arrombadores (o senhor acredita na inocência dos bancos?), partilhei mesa de bar com poetas e literatos populares, tive de ouvir declamações intermináveis e novas músicas compostas por compositores que jamais teriam suas canções divulgadas pela mídia, me acerquei de cineclubistas, livreiros, colecionadores de ritmos antigos – rumbas, tangos, boleros ou rock primitivos – e pude observar, ao lado deste impressionante ritmo de vida, como a vida dessas pessoas é marcada pela repressão. E de como a vida incerta das pessoas pobres segue seu rumo, sem depender muito do Estado e de suas políticas “sociais”. Parte dessas andanças eu as registrei num artigo publicado no Boletim do Instituto de Saúde, de que gosto muito.[1] 
Aliás, todo esse número do BIS foi dedicado a temas de violência e saúde.
Voltando ao prefeito. Na ocasião em que a conversa se deu, meu interesse estava voltado para o comércio de drogas ilegais e ainda a relação local com as forças policiais. Estive em entrevista ao prefeito por conta dos nossos projetos e porque mantínhamos forte interlocução com os escritórios regionais e com os sistemas locais de saúde. Poucos desses pré-projetos prosperaram e, todavia, restou um enorme aprendizado das coisas da vida, dessas que não cabem nem nunca caberão num artigo científico ou numa dissertação ou tese.

A conversa ia num bom ritmo - saúde, educação, políticas afirmativas -, o prefeito esse tinha excelente raciocínio e capacidade ímpar de explanar suas políticas, demonstrando excelente apreensão das coisas de sua cidade. E então me ocorreu perguntar: prefeito, quem vende maconha aqui nesta cidade? quem controla esse comércio, o senhor tem ideia? A conversa embatucou durante alguns minutos ao cabo dos quais ele respondeu – alguém deve vender, eu imagino, não é coisa da qual eu passe perto nem ninguém que conheça. Não é coisa que tenha importância para a cidade, acredito nisso porque essa questão do comércio nunca foi um problema colocado em discussão pelos movimentos ou faça parte das reivindicações da população, nem mesmo na periferia.

Achei tudo muito simples. Mas o que o prefeito informava não cabia no conjunto das observações que antes eu havia feito na periferia de SP. A saber, o do extenso, sinuoso e invisibilizado conúbio entre polícia e tráfico, a vacuidade das acusações formais, o artificialismo dos processos judiciais e a detenção exageradamente elevada de suspeitos, assuntos já por demais debatidos no Brasil na imprensa especialista e fora dela. E se o prefeito não tinha nenhuma ideia deste comércio então podia ser que não tivesse também nenhuma ideia de como a polícia atuava. E me chamou a atenção justamente porque a população daquela cidade historicamente apresenta altos percentuais de negros e pardos na sua composição demográfica, um dos maiores de todo o interior. Por este motivo, pareceu que seria relevante saber das forças policiais na cidade. Porque poderia ocorrer, e de fato eu não sabia, de as operações policiais serem definidas em conjunto, comando militar e município. E estas foram as perguntas: o senhor participa da vida da Polícia Militar na cidade, tem contato formal e regular com os comandantes? O senhor é consultado quando há troca de comando? O senhor é avisado ou existe deliberação conjunta quando é realizada alguma operação da PM, uma blitz, por exemplo?

Eu estava diante do chefe do poder civil. Civil, civis, civitatis, civilidade, civilização. A cidade, a polis. Prefeitura, municipalidade, múnus, o que tem mandato ou o que tem o dever de conduzir os assuntos públicos visando ao bem de todos os cidadãos, com base na lei, o eleito pela maioria para governar a cidade. Então ele me diz não, nunca sou consultado quando há troca de comando nem a prefeitura é avisada quando vai ocorrer alguma operação. Blitz também não, já fiquei detido numa delas. As relações são protocolares. Numa única ocasião veio me visitar um capitão pm que era relações públicas e só. Muito simpático o relações públicas.

Manu militari. Ali, num rasgo, ficou claro que passadas duas décadas desde a ditadura o país mantinha-se cindido: poder civil e poder militar. Encostado num o poder do outro sobre os cidadãos, um tocando cotidianos assuntos triviais enquanto o outro decidindo sobre a vida e a morte. No limite. A mesma PM que restou intocada dos dispositivos ditatoriais, aquilo que Ulisses Guimarães certa vez chamou de entulho, esses dispositivos construídos com a finalidade de auxiliar na repressão aos opositores políticos, ali, naquela entrevista, ela me aparecia em sua forma acabada: a do poder paralelo. E se antes, lá nos anos 1970, visava a reprimir ou a eliminar o inimigo interno, o comunista, o terrorista, o inimigo da pátria e da religião, agora o inimigo interno se havia transmudado: é o preto, o pobre, o periférico, o ladrão comum, o batedor de carteira, e eventualmente o assaltante de banco ou o quadrilheiro de caixas eletrônicos.
Assim se passaram dez anos, vinte anos. Agora, passados golpes e contragolpes, já existem outros inimigos internos: os estudantes secundaristas, os estudantes das universidades públicas, os professores das universidades públicas, as mulheres; homossexuais, indígenas, quilombolas; os invasores de terras (não os de terno e gravata), os defensores dos invasores de terras, os defensores da terra e das águas, os defensores dos bichos; e ainda os que defendem a soberania nacional. Todos condenados, estamos todos condenados. Porque somos o Outro. O povo. Se diz hoje o que se dizia antes: quem trabalha não tem tempo para balbúrdia; quem não deve não teme; ora e trabalha, deus te protegerá e quem assim procede colherá bons frutos; descansa, irmão, e não cobices mais do que podes ter; cumpra teu dever.

Agora essa polícia militarizada, treinada e fortemente armada quer mais, ela pode mais. Tem representantes em todas as instâncias do parlamento que amplificam demandas nada civilizadas, pois se trata da re-emergência do Nefasto: o fascismo bruto está de volta. E querem o poder, eles sabem e há quem queira, e esses que querem não aparecem nesta condição. Todavia, reivindicam e chantageiam, como se pudesse fazer parte da cidade e do logos a opinião armada.

Momo, finalmente, reina!

*Carlos Botazzo, 74 anos, São Paulo. Professor universitário. Escrito em 20/02/2020. 


[1] A vida aí fora (ou há vida aí fora). BIS; 33, agosto/2004.

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