AGENDA CULTURAL

12.3.20

Pôncio Pilatos nos ensinou a lavar as mãos


Hélio Consolaro é professor,  jornalista e escritor. Araçatuba-SP

Nesse tempo de histeria com o coronavírus, ouve-se muito a expressão "lavar as mãos". Algum dia, não sei se muito longe, alguém vai dizer que houve manipulação política nisso tudo. Bug do milênio é um exemplo. Aguardemos.

Quando imaginávamos ter chegado ao fundo do poço, quando parcela importante do eleitorado brasileiro não votou em ninguém, lavou as mãos, eis que surge o coronavírus. Precisam lavar as mãos novamente.

Com o ato de lavar as mãos com assiduidade, a humanidade combateu várias pestes. Em casa e nas escolas, mães e professoras tentam criar nas crianças o hábito de higienizar as mãos antes das refeições. 
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Ouça a música Lavar as mãos, de Arnaldo Antunes:


Uma lava outra, lava uma

Lava outra, lava uma mão

Lava outra mão, lava uma mão
Lava outra mão
Lava uma

Depois de brincar no chão de areia a tarde inteira
Antes de comer, beber, lamber, pegar na mamadeira
Lava uma (mão), lava outra (mão)
Lava uma, lava outra (mão)
Lava uma

A doença vai embora junto com a sujeira
Verme, bactéria, mando embora embaixo da torneira
Água uma, água outra
Água uma (mão), água outra
Água uma

A segunda, terça, quarta, quinta e sexta-feira
Na beira da pia, tanque, bica, bacia, banheira
Lava uma mão, mão, mão, mão
Água uma mão, lava outra mão
Lava uma mão
Lava outra, lava uma
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Há políticos que literalmente lavam as mãos durante as campanhas eleitorais. Quando terminam o dia de trabalho, de tanto pegar em mãos alheias e bater as suas nas costas dos eleitores, lavam as mãos, passam nelas gel com álcool várias vezes diariamente.

E o adversário político já grita aos quatro cantos que seu concorrente não gosta de cheiro de povo, estendem as mãos para cumprimentar as pessoas, mas ficam com nojo delas. Lavam-nas na primeira oportunidade.

Se a gente faz uma grande corrente com abraços e cumprimentos de estender a mão, pela mesma via passam a amizade e solidariedade, porém fazem o mesmo caminho os vírus.  Como escreveu Augusto dos Anjos no soneto Versos íntimos: "A mão que afaga é a mesma que apedreja". 

Temos a capacidade de mudar o bom sentido das frases, se a recomendação de São Francisco era "dar para receber" como princípio da caridade, ela é pronunciada com insistência nas negociações políticas; aconteceu o mesmo com "uma mão lava a outra, e as duas lavam o rosto", transformando a saudável troca de favores num ato de corrupção.

O primeiro homem que lavou as mãos em público no sentido de renunciar a responsabilidades, se isentando de culpa, foi Pôncio Pilatos, quando perguntou ao povo quem queria salvar, Jesus Cristo ou o ladrão Barrabás. E a multidão gritou o nome do bandido. E como todos sabem, Jesus foi crucificado 

Só restou a Pilatos balbuciar  a frase: “Estou inocente deste sangue. Lavo as minhas mãos”. E dizem por aí que a voz do povo é a voz de Deus.

2 comentários:

Lineu Navarro disse...

Helio, gostei da crônica. Abraços.

Plenamente Psicanálise disse...

Fantástico.... !!!
E acho ainda que há hora de lavar as mãos, e hora de arregaçar as mangas e sujar as mãos para o bem maior.
Tomara que saibamos a diferença na hora de agir!