A Dívida da Globo com o SUS
Caro Sr. Roberto, meus votos de uma boa recuperação da recente cirurgia ao qual foi submetido. Sou médico e, ao ler as manchetes e sua declaração, fiquei feliz em saber que o senhor deixou bem claro o fato de ter feito o transplante através do SUS. Conheço bem a doença hepática gordurosa não-alcóolica (DHGNA) e sei que é uma das maiores causas de cirrose na atualidade, superando o alcoolismo e a hepatite C. Agora tenho o exemplo do senhor para mostrar o quanto essa doença realmente é perigosa.
Cartas normalmente não carregam títulos, mas nessa há um.
Antes que me esqueça, a Rede Globo, da qual o senhor é o líder, tem desempenhado um papel muito importante para a sociedade brasileira no enfrentamento da pandemia. Numa época de desinformação vinda por redes sociais, o jornalismo da emissora tem sido de um alto nível, consultando sempre médicos e cientistas, tanto que recupera telespectadores e credibilidade a cada dia. Porém, frequentemente faltam três letrinhas em reportagens, entrevistas e editorais: S, U e S. E esse é um dos motivos pelos quais escrevo essa provocação.
O senhor, uma das pessoas mais ricas do país, ter sido submetido a transplante pelo SUS carrega muitos significados. Nosso sistema de saúde pública tem princípios e o mais importante deles é justamente a universalidade, que sustenta o SUS como uma das poucas fontes de solidariedade em nossa sociedade. Sendo assim, como cidadão Roberto Irineu Marinho, o senhor não tem dívida alguma ao ser paciente do SUS. Qualquer cidadão e os imigrantes compartilham, por enquanto, do mesmo direito.
O SUS, desde sua criação, enfrenta diversas dificuldades. As duas principais são o subfinanciamento e a imagem distorcida. A primeira, a escassez de recursos para um projeto fundamental e civilizatório, surgiu desde a criação do SUS. Traquinagens parlamentares retiraram fontes de financiamento do SUS, que deveria receber, desde o início, 30% do Orçamento da Seguridade Social. Desde lá, falta dinheiro para que mais pessoas tenham melhor cuidado.
Quanto ao desafio da imagem, ele está relacionado diretamente como causa e efeito do primeiro. Mais de uma vez ouvi que o SUS é a Geni da sociedade. Assim como na música, na maior parte do tempo o SUS é maltratado e largado. E isso permite que a população não perceba sua importância e que ele sofra cortes e viva sob constantes ameaças, que passam indiferentes até mesmo por aqueles que dele dependem. Raras vezes, quando da vinda do Zepelim ou de um vírus como agora, ao SUS recai o papel desproporcional de salvador. Imagem e formação da opinião pública, o senhor melhor do que qualquer brasileiro, sabe que é produto de comunicação, de poder e a imprensa, numa sociedade de baixo nível educacional, acaba sendo protagonista. Há pesquisas de jornalismo mostrando que nessas três décadas do SUS, reforçou-se na mídia uma imagem negativa. Hoje, é comum e paradoxal ouvir de pessoas muito pobres que o SUS é ruim e que deveria ser privatizado. Isso choca e não aconteceu à toa. Não digo que 100% desse fenômeno seja responsabilidade da imprensa, sei que gestores públicos e uma elite financeira historicamente pouco solidária contribuíram muito, mas será que não há uma parcela importante da Rede Globo nisso?
Por que na festa das Olimpíadas de Londres se destacou o NHS como orgulho nacional e aqui as pessoas menosprezam a mesma iniciativa de sistema universal de saúde? Acho que há, sim, uma parcela grande de culpa da imprensa.
Sobre dificuldades, considero relevante destacar que a saúde pública tem enfrentado dificuldades ainda maiores desde o atoleiro político e econômico no qual estamos desde o final das eleições presidenciais de 2014. Piorou a questão de financiamento e piorou também a imagem do SUS. Parte da imprensa apoiou a EC 95, mesmo ignorando alertas de entidades de saúde, que congelou investimentos em saúde por 20 anos. Sr. Irineu, nos últimos dois anos o SUS deixou de receber cerca de 20 bilhões de reais por causa dessa emenda. Com esse recurso, poderíamos custear TODO o Sistema Nacional de Transplantes por 10 ANOS. Custear os 506 centros que realizam os 27 mil transplantes por ano em todo Brasil por uma década.
Assim como o senhor precisou do SUS para um procedimento complexo, pelo menos outras 2244 pessoas também precisarão de um transplante de fígado neste ano. E milhões de pessoas pobres e da classe média baixa irão até farmácias buscar medicamentos para pressão alta, diabetes e asma de forma gratuita através de um programa chamado Farmácia Popular. No entanto, desde o golpe esse programa mingua com cortes. O SUS, Sr. Irineu, é amplo e, conforme o Dr. Dráuzio assevera: é o que nos afasta da barbárie.
O direito de fazer o transplante pelo SUS com certeza o senhor tem. E é por esse direito que militantes da saúde pública costumam incomodar, não se importando se são chamados de esquerdistas, comunistas, utópicos. Porém, peço que o senhor, dentro da condição de ter privilégio extremo em termos de recursos materiais e de ser o líder do maior grupo de comunicação do Brasil, ajude o SUS a enfrentar esse desafio da imagem negativa.
O SUS precisa da imprensa para que sua história seja contada; para que todos esses riscos de desmonte e grupos que o ameaçam sejam expostos. O SUS precisa de uma imprensa que o trate diferente.
São diversas as possibilidades de, em poucos meses, ajudar a contar essa história. Não me refiro apenas a um Globo Repórter, poucas reportagens ou até um editorial forte, mas a uma iniciativa mais ampla.
Ajude o SUS, Sr. Roberto Irineu. Mostre o quanto é nociva essa EC 95. Aposto que, assim, ela cai logo. A ideia temerária do Paulo Guedes de desobrigar os investimentos mínimos (piso) em saúde dos Estados e Municípios também poderá ser abandonada se a Globo e suas plataformas mostrarem seus riscos.
Se não defendermos e valorizarmos o SUS agora, em plena pandemia, com a já iniciada crise econômica e social, dificilmente seus programas se manterão. Entre eles, Sr. Roberto, o Sistema Nacional de Transplantes.
Essa é a dívida, que pode ser chamada de missão. Outros grandes empresários, ao serem expostos a necessidades que envolveram a sua vida ou a de familiares, mudaram seu discurso e agiram em prol do coletivo de maneira mais direta.
Um Abraço,
Leandro Minozzo
Médico geriatra, professor de Medicina da Universidade FEEVAL
Caro Sr. Roberto, meus votos de uma boa recuperação da recente cirurgia ao qual foi submetido. Sou médico e, ao ler as manchetes e sua declaração, fiquei feliz em saber que o senhor deixou bem claro o fato de ter feito o transplante através do SUS. Conheço bem a doença hepática gordurosa não-alcóolica (DHGNA) e sei que é uma das maiores causas de cirrose na atualidade, superando o alcoolismo e a hepatite C. Agora tenho o exemplo do senhor para mostrar o quanto essa doença realmente é perigosa.
Cartas normalmente não carregam títulos, mas nessa há um.
Antes que me esqueça, a Rede Globo, da qual o senhor é o líder, tem desempenhado um papel muito importante para a sociedade brasileira no enfrentamento da pandemia. Numa época de desinformação vinda por redes sociais, o jornalismo da emissora tem sido de um alto nível, consultando sempre médicos e cientistas, tanto que recupera telespectadores e credibilidade a cada dia. Porém, frequentemente faltam três letrinhas em reportagens, entrevistas e editorais: S, U e S. E esse é um dos motivos pelos quais escrevo essa provocação.
O senhor, uma das pessoas mais ricas do país, ter sido submetido a transplante pelo SUS carrega muitos significados. Nosso sistema de saúde pública tem princípios e o mais importante deles é justamente a universalidade, que sustenta o SUS como uma das poucas fontes de solidariedade em nossa sociedade. Sendo assim, como cidadão Roberto Irineu Marinho, o senhor não tem dívida alguma ao ser paciente do SUS. Qualquer cidadão e os imigrantes compartilham, por enquanto, do mesmo direito.
O SUS, desde sua criação, enfrenta diversas dificuldades. As duas principais são o subfinanciamento e a imagem distorcida. A primeira, a escassez de recursos para um projeto fundamental e civilizatório, surgiu desde a criação do SUS. Traquinagens parlamentares retiraram fontes de financiamento do SUS, que deveria receber, desde o início, 30% do Orçamento da Seguridade Social. Desde lá, falta dinheiro para que mais pessoas tenham melhor cuidado.
Quanto ao desafio da imagem, ele está relacionado diretamente como causa e efeito do primeiro. Mais de uma vez ouvi que o SUS é a Geni da sociedade. Assim como na música, na maior parte do tempo o SUS é maltratado e largado. E isso permite que a população não perceba sua importância e que ele sofra cortes e viva sob constantes ameaças, que passam indiferentes até mesmo por aqueles que dele dependem. Raras vezes, quando da vinda do Zepelim ou de um vírus como agora, ao SUS recai o papel desproporcional de salvador. Imagem e formação da opinião pública, o senhor melhor do que qualquer brasileiro, sabe que é produto de comunicação, de poder e a imprensa, numa sociedade de baixo nível educacional, acaba sendo protagonista. Há pesquisas de jornalismo mostrando que nessas três décadas do SUS, reforçou-se na mídia uma imagem negativa. Hoje, é comum e paradoxal ouvir de pessoas muito pobres que o SUS é ruim e que deveria ser privatizado. Isso choca e não aconteceu à toa. Não digo que 100% desse fenômeno seja responsabilidade da imprensa, sei que gestores públicos e uma elite financeira historicamente pouco solidária contribuíram muito, mas será que não há uma parcela importante da Rede Globo nisso?
Por que na festa das Olimpíadas de Londres se destacou o NHS como orgulho nacional e aqui as pessoas menosprezam a mesma iniciativa de sistema universal de saúde? Acho que há, sim, uma parcela grande de culpa da imprensa.
Sobre dificuldades, considero relevante destacar que a saúde pública tem enfrentado dificuldades ainda maiores desde o atoleiro político e econômico no qual estamos desde o final das eleições presidenciais de 2014. Piorou a questão de financiamento e piorou também a imagem do SUS. Parte da imprensa apoiou a EC 95, mesmo ignorando alertas de entidades de saúde, que congelou investimentos em saúde por 20 anos. Sr. Irineu, nos últimos dois anos o SUS deixou de receber cerca de 20 bilhões de reais por causa dessa emenda. Com esse recurso, poderíamos custear TODO o Sistema Nacional de Transplantes por 10 ANOS. Custear os 506 centros que realizam os 27 mil transplantes por ano em todo Brasil por uma década.
Assim como o senhor precisou do SUS para um procedimento complexo, pelo menos outras 2244 pessoas também precisarão de um transplante de fígado neste ano. E milhões de pessoas pobres e da classe média baixa irão até farmácias buscar medicamentos para pressão alta, diabetes e asma de forma gratuita através de um programa chamado Farmácia Popular. No entanto, desde o golpe esse programa mingua com cortes. O SUS, Sr. Irineu, é amplo e, conforme o Dr. Dráuzio assevera: é o que nos afasta da barbárie.
O direito de fazer o transplante pelo SUS com certeza o senhor tem. E é por esse direito que militantes da saúde pública costumam incomodar, não se importando se são chamados de esquerdistas, comunistas, utópicos. Porém, peço que o senhor, dentro da condição de ter privilégio extremo em termos de recursos materiais e de ser o líder do maior grupo de comunicação do Brasil, ajude o SUS a enfrentar esse desafio da imagem negativa.
O SUS precisa da imprensa para que sua história seja contada; para que todos esses riscos de desmonte e grupos que o ameaçam sejam expostos. O SUS precisa de uma imprensa que o trate diferente.
São diversas as possibilidades de, em poucos meses, ajudar a contar essa história. Não me refiro apenas a um Globo Repórter, poucas reportagens ou até um editorial forte, mas a uma iniciativa mais ampla.
Ajude o SUS, Sr. Roberto Irineu. Mostre o quanto é nociva essa EC 95. Aposto que, assim, ela cai logo. A ideia temerária do Paulo Guedes de desobrigar os investimentos mínimos (piso) em saúde dos Estados e Municípios também poderá ser abandonada se a Globo e suas plataformas mostrarem seus riscos.
Se não defendermos e valorizarmos o SUS agora, em plena pandemia, com a já iniciada crise econômica e social, dificilmente seus programas se manterão. Entre eles, Sr. Roberto, o Sistema Nacional de Transplantes.
Essa é a dívida, que pode ser chamada de missão. Outros grandes empresários, ao serem expostos a necessidades que envolveram a sua vida ou a de familiares, mudaram seu discurso e agiram em prol do coletivo de maneira mais direta.
Um Abraço,
Leandro Minozzo
Médico geriatra, professor de Medicina da Universidade FEEVAL
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