AGENDA CULTURAL

1.5.20

A parábola do voto certo

Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Araçatuba-SP

É você que ama o futuro
E que não vê
Que o velho  sempre volta

(Paródia de de trecho da letra da música "Como nossos pais", de Belchior)

Muitas vezes se ouve que o problema do Brasil é a falta de educação (com escola de qualidade), assim as pessoas ganham consciência política. Só não sabemos de que lado.

Mas não fiquemos no campo conceitual. Algumas pessoas escutam e não entendem, porque a teoria não é acessível a todos, vamos à parábola, como fazia Jesus Cristo no seu tempo.

Seu Deocleciano era um sujeito rude, não muito alto. Vangloriava-se de não ter ido a médicos, nasceu pelas mãos de uma parteira. Era contra vacinas.

- Não sou dama para ficar indo ao médico toda hora... Ainda mais se for pra fazer o exame da prosta.

Embora morasse na zona urbana, a sua casa tinha todas as características da antiga zona rural. Tinha água, luz e esgoto porque era uma exigência, não gostava de tais luxos. E esse negócio do fio para ligar os aparelhos na tomada ter três pinos é um desaforo. 

Outro dia, num supermercado, que passou a frequentar depois de muita briga, gostava mesmo é do antigo empório, com balcão, estava sem máscara e não obedecia o distanciamento entre as pessoas. Esse negócio de coronavírus era negócio inventado pelos doutores para pôr os caboclos de joelho. 

A funcionária do supermercado lhe fez uma reprimenda. E a resposta veio grossa:

- Se eu ficar doente, o problema é meu!

A moça deu um sorriso amarelo. E eu me contive para não dar berros no ouvido daquele ignorante. Pensei comigo: deve ser eleitor do Bolsonaro.

O problema não é só da moça, é meu também, de todos nós, porque vai contaminar mais gente. Já descobrimos que vivemos numa bolha de ar com a Terra dentro. Se eu não elimino os focos de dengue de meu quintal, prejudico toda a vizinhança. E assim vai.

Além do mais, se aquele ignorante ficar doente, vai gastar dinheiro do governo (que é composto por impostos pagos por todos) com um sujeito irresponsável. E não existe só o Seu Deocleciano com tal ignorância. Há muitos. Está melhorando, mas há um resquício intolerável.  

E assim fiz a minha compra rapidinho. Ao passar no caixa, está ele na minha frente com sua digníssima esposa e a compra do mês. Ele só foi lá para pagar, porque não repassa dinheiro para a mulher. Não confia em mulher.

A caixa pergunta:

- No cartão? 

Aí veio o discurso:

- Meu negócio é no dinheiro! 

E falou um monte de xingamentos de quem usa cartão.

E a moça do caixa teve que testar nota por nota para ver se havia alguma falsa no pacote. E demorou. E Seu Deoclécio bufando de raiva.

- Se fosse no cartão, seria bem mais rápido! O senhor teima em ser atrasado  - disse a caixa.

Os impacientes, inclusive este cronista, gritamos em uníssono:

- Bem feito, velho atrasado!

No final do imbróglio, fui ter uma conversinha de pé de orelha com o Seu Deocleciano:

- Posso fazer uma pergunta?

- Claro, doutor!

- Em que o senhor votou para presidente no ano passado?

- O senhor não vai ficar bravo se eu for sincero? Eu acho que não foi o seu candidato.

- Aceito a sua resposta, seja qual for ela - respondi.

- Votei naquele rapaz indicado por Lula, claro! O que o barbudo falar eu sigo.

Cheguei mais uma vez a provar que a cidadania não é lógica e nem ideológica. Não tem voto certo. 

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