Carlos
Botazzo, citoyen[1]
A pandemia do coronavírus e as medidas adotadas pelos governos
para o isolamento social, com vistas e diminuir ou retardar seus mortíferos efeitos,
provocaram numerosas interpretações e ensaios no intuito de compreender os
novos significados que poderiam ser extraídos da experiência social típica dos
tempos de peste. Albert Camus tem muito o que nos ensinar.
Mas não apenas ele. Juliana de Albuquerque publicou recentemente
na Folha de São Paulo[2]
matéria onde discorreu sobre certas questões existenciais que cercam a
quarentena imposta como prática eficaz de isolamento para conter a disseminação
do Covid (ia dizendo inseminação....).
No artigo - Primo Levi
reproduz com clareza complexidade da vida em situações-limite -, Juliana articula
duas categorias de alto interesse semiótico: confinamento e classe social.
Inicialmente, ela se pergunta como os pobres da periferia estão ou estariam se
sentindo trancafiados em suas casas e impossibilitados de ir-e-vir. Isso há
dois meses, quando ainda a tragédia nos aparecia como discreta nuvem.
“Pobres da periferia”, quase dizia a Juliana. Eles, os pobres da
periferia, são uma classe de pessoas. Já periferia é uma categoria de análise,
que se dá como uma classe do urbano, um pedaço - e dos mais vistosos - das
nossas formas de classificação social, justamente aquela que não trata de saber
quantas geladeiras ou televisores as pessoas têm em casa, mas sim a
precariedade da moradia popular, a renda, a escolaridade, o lugar do outro – o
nosso lugar - na produção social. Que é deveras extensa. São categorias
extensas, dominantes na vida, porque nossa vida é deste modo: não é feita de
quantos televisores temos em casa e sim do quanto somos irmanados ou conectados
de fato nas nossas suficiências ou insuficiências. Ou na nossa alienação.
Juliana queria dizer que ficar em casa confinado provoca novas e
inesperadas situações, novas subjetividades, novos modos de produção das nossas
referências espaciais e relacionais. É verdade, e podemos todos assinar e dar
fé a essa declaração. São mesmo muitas coisas que se acham em causa neste
momento. Irão suportar ficarem trancafiados os periféricos, literalmente ficar
na tranca? Podemos concordar com as preocupações de Juliana.
E, todavia, alguns reparos são necessários. Primeiro, vamos
procurar entender o que diz Primo Levi. Ou melhor, o que aconteceu com Primo
Levi. Ele foi recolhido em Fossoli, norte da Itália, em dezembro de 1943. Com
vinte e quatro anos, havia ingressado num grupo partigiani, e, todavia, não foi este o motivo principal de sua
captura, antes o de ser um ebreo. Em
janeiro de 1944 foi removido a Auschwitz, numa viagem de rigor excruciante que
durou mais de uma semana. Lá, sobreviveu. Os soviéticos, que entraram na região
em fevereiro de 1945, liberaram o campo e os poucos prisioneiros que ficaram
para traz após a debandada das SS. Levi relatou as condições abruptas dessa
internação num pequeno livro, editado dois anos após sua libertação. O título
é, em si, um grito: É isso um homem? Se
questo è un uomo..... Ele se perguntou por essa natureza insistentemente e não obteve resposta, mesmo quando, aos
sessenta e sete anos, deu cabo da própria vida.
João Pedro morava em Itaoca, em São Gonçalo, Rio de Janeiro. Ele não
era ebreo nem se havia organizado
como partigiani. Ebreo ou partigiani, esses
não eram os defeitos dele, pois o defeito
de João Pedro era outro, era de ser negro. Negro e pobre. Um adolescente
negro, com a cara alegre e cativante como são a dos adolescentes. Mais velho talvez
tivesse que lutar contra as adversidades da vida, e seria bem possível que João
Pedro não tivesse claro como faria isso. Motivos provavelmente ele os tivesse,
talvez pensasse, como muitos da sua condição, que estudar seria uma boa. O
estudo pode ser uma arma, hão de dizer. A escola emancipa. A escola pobre, com
seus professores pobres e que ensina aos pobres filhos dos pobres qual o lugar
que eles terão no mundo, emancipa. Estamos em 2020. João Pedro continua entre
nós. Virou uma estrela, como alguns gostam de dizer. João Pedro não respondeu a
coisa certa ou não estava no lugar certo no dia em que a tropa invadiu sua
casa. Morreu com tiros perdidos, dizem que na barriga. E voou para o céu a bordo
de um helicóptero oficial. Era do Estado o tal helicóptero. Ao contrário de
Primo Levi, João Pedro não deu cabo da própria vida.
Levi sempre acreditou que o retorno do fascismo era possível e
passou a vida toda testemunhando. É preciso dizer o que aconteceu lá, afirmava, e passou os anos
seguintes, as poucas décadas que teve, afirmando isso. Precisamos contar,
sempre e sempre, porque - nos diziam lá dentro - não nos importamos se vocês
saírem daqui vivos. Não sairão, mas é indiferente, pois se um dia vocês contarem
o que aconteceu aqui, ninguém irá acreditar. A língua não dá conta, não é
suficiente para relatar as atrocidades que se nos acometem. “Primo Levi
insistiu ao longo de sua vida, em seus livros e manifestações públicas, que o
testemunho cumpria a função de provocar o desbloqueio da memória coletiva. E
que tinha ainda por função política contribuir na luta contra o fascismo.”[3]
Precisamos contar, é muito possível que o fascismo retorne, eu já escuto os
seus sinais.... afirmava um alucinado Primo Levi em 1986.
[pensei que queria eu também contar um pouco do nosso confinamento
durante a ditadura civil-militar de 1964. Muito foi contado e não
supreendentemente ainda muitos duvidam. Confinados que fomos e submetidos aos
tratamentos de choque comuns, que todos os presos de ditaduras partilham. É um
comum a violência institucional por aí neste mundo mesmo agora civilizado. Abu
Ghraib: vimos aquelas cenas e não nos importamos. Vimos também as cenas de
Auschwitz e igual que foi. Os alemães também viam aquelas cenas, preservadas
nos filmes da época e que eram projetados nos cinemas lotados de Berlim antes
do filme principal, em meio aos urros da plateia, aos risos e pedindo mais.
Aqui, não tivemos filmes, mas tivemos Abílio Soares, Tutoia e Barão de
Mesquita, tivemos a Casa da Vovó, as várias casas da vovó]
São vastas as possibilidades de intercâmbio linguístico entre Campo
- Lager - e Periferia. Ou interfaces entre Campo e Plataforma Produtiva Escravocrata
Brasileira. Está no nosso DNA e no do Estado. Por isso, se acha por inteiro no
sistema prisional. Na antiga plataforma brasileira o sujeito ou se revoltava ou
só sairia morto, direto da senzala para uma igreja do Rosário. Do campo não
havia como ser diferente: saía-se pela chaminé, literalmente a única saída. No
Campo foram depositados milhões de seres humanos, apenas isso – humanos. A Periferia
é o lugar onde se acham depositados os milhões humanos pertencentes ao nosso
velho modo de trabalhar. Vieram de longe, todos eles. Warum? Por quê. Não há porquê no Campo, aprendeu Primo Levi no
primeiro dia. Na Periferia é possível perguntar.
Todos estimam que o problema do periférico é ficar em casa. Perigo
real, ficar em casa. Por causa do acumulado de gente nos pequenos espaços
periféricos. É coisa de pobre e é perigoso, dizem, ficar trancafiado em pequeno
espaço, muita gente apertada o vírus gosta. Não havia esse vírus nos tempos do
presídio Tiradentes ou da Ilha Grande. Mas o problema na perifa, galera, na
real, não é ficar em casa. Se vai e se vem. Alguém quem que manter a economia
funcionando. Não havia vírus no Presídio Tiradentes. Nem no Campo havia. O
vírus era outro e não se morria de aperto. Não exatamente de aperto, como não
se morre de aperto na Periferia. Morreu-se de Estado no Campo e no Presídio.
Morre-se de Estado na Periferia. Na Periferia é possível perguntar: de que
mesmo morreu João Pedro, ele que estava em casa? Warum?
Ma misi me
per l’alto mare aperto[4], ouço
João Pedro cantando com Dante.
[1]
Aposentado.
[2] Folha - Colunistas - Juliana de Albuquerque,
7/4/2020.
[3]
Percursos irregulares, 2019, p. 264. “...
quanto del mondo
concentrazionario è morto e non ritornerà più, come la schiavitù ed il codice
dei duelli? quanto è tornato o sta tornando?” Primo
Levi não conheceu o Brasil nem as prisões brasileiras. Do contrário, espantado ele
diria: il mondo concentrazionario è davvero
tornato!
[4]
Dante, Divina comédia, Canto XXVI. É o canto onde Ulisses explica a Dante como
morreu: ‘eu me meti pelo alto-mar aberto’.
2 comentários:
Otimo texto....abraco.
Periferia = Campo de extermínio operado pela Polícia Militar do Estado
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