AGENDA CULTURAL

19.7.20

O cheiro e as nossas lembranças! - Alberto Consolaro

Esta era a Enciclopédia Barsa, ainda comercializada entre nós!


Entre as influências para sermos o que somos, o cheiro foi uma delas! Nunca frequentei qualquer escola antes do primeiro ano primário. Tinha seis anos. Era escola de uma sala só, extensão da escola lotada do bairro. A sala ficava ao lado do pequeno aeroporto da cidade, em continuidade ao hangar de pequenos aviões a ser concertados e pintados. Até hoje quando sinto o cheiro de tinta fresca de funilaria, imediatamente me remeto ao primeiro ano de escola. A professora era Cleuza Sanches, da qual guardo um presente até hoje! Na porta da escola tinha um pé de mandacaru!
BIBLIOTECA
Menino levado, nos intervalos, sempre ia na biblioteca. Se encantava com as enciclopédias Larousse, Mirador e Conhecer, mas nada era igual à Enciclopédia Barsa. Ter a Barsa em casa era coisa de milionário. Eram mais de 20 volumes e a cada ano a pessoa recebia o volume do ano para atualizar. A Enciclopédia Barsa era como a Wikipédia hoje, tinha de tudo que se consultava!
Na biblioteca do Instituto de Educação Estadual tinha todas as obras de Júlio Verne com suas viagens e de Monteiro Lobato com seus personagens maravilhosos. Lia e relia estas obras com olhos e cérebro excitados de tanta aventura e informação. Eu viajava tal como se faz hoje os meninos ao assistirem uma série, com olhos vidrados! Eu sentia o cheiro de biblioteca e onde estavam os livros justapostos com aquele silêncio cortado pelo barulho das páginas viradas e interrompido pela escandalosa sirene avisando que a aula iria começar!
ATLAS
Eu ficava horas no atlas geográfico! A professora Maria Luzia fazia gincanas e campeonatos dentro da sala para localizarmos cidades, estados e países. Hoje tenho plena noção de localização, fusos horários, geopolítica e a importância de saber que sou apenas um habitante do planeta e que minha pátria é a terra e não o meu quintal. Depois que apareceu o “gps”, percebi como isto foi importante!
Eu ficava imaginando cada cidade, estado e país. Já pensou se eu pudesse ver cada cidade e hoje faço isto para me divertir. Localizo as cidades no aplicativo de mapas e busco fotos e vídeos de cada uma delas. Um desses aplicativos me permite dirigir em cada uma das cidades. Mas eu ainda vou ver aplicativos me fazendo sentir o cheiro de cada uma desses lugares saindo pela tela!
PEDAÇO DE JORNAL
Às vezes, eu era escalado para comprar a alface na quitanda, o pão ou arroz no mercadinho. Nesta época era comum e permitido usar jornal para embrulhar quase tudo. Isto foi muito importante, pois ao chegar em casa, a primeira coisa que fazia era desembrulhar e ir para a varanda ler a folha de jornal, sem se importar qual era o assunto. Ler o jornal me fascinava e nem sabia qual a razão disto, mas ficava excitado com as notícias.
As pessoas acumulavam os jornais para vender por quilo ou doar para alguém fazer isto e ganhar alguns trocados, vendendo às mercearias, quitandas, padarias e mercadinhos. Eu mesmo já fiz isso e ao pegar aqueles montes de jornais o cheiro de tinta era inevitável. Aliás o mesmo cheiro que sinto quando entro na redação do jornal!
CHEIRO DE REVISTA
As revistas como Cruzeiro, Manchete, Realidade, Fatos e Fotos e mesmo os primeiros anos da Veja, eram impressas com tinta que trazia um cheiro típico que se espalhava pelo ambiente onde ficavam.
O patrão de meus pais trazia as revistas para a casa da fazenda onde morei no começo da infância, tinha lá meus 5 anos, e até hoje quando sinto o cheiro desta tinta que quase ninguém mais usa para imprimir, parece que me transporto para a infância. Folhear aquelas revistas, mesmo com 5 anos, folha por folha era encantador como as crianças que folheiam as páginas do ipad ou celular frente a um aplicativo ou game novo: desliga-se tudo e concentra-se na novidade. Eu fazia assim! Até hoje, cá entre nós, me pego, às escondidas, cheirando revistas à procura daquele cheiro cada vez mais raro! Que pena ...
REFLEXÃO                                                                               
Hoje quando dizem que a pessoa perdeu o olfato, se fosse eu, seria como deletar importantes lembranças de minha infância: viva o cheiro!



Alberto Consolaro – Professor Titular da USP - FOB de Bauru-SP - consolaro@uol.com.br 




Nenhum comentário: