AGENDA CULTURAL

14.12.20

Mudar clássicos é crime


Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Araçatuba-SP

Você já ouviu muitas vezes, até cantou a música "Atirei o pau o no gato". Hoje, ela é politicamente incorreta, pois não se ensina mais as crianças a maltratar os animais. No meu tempo de criança, cachorro era tratado a botinadas e comia restos dos pratos dos humanos. 

Deixar a música de lado ou trocar a letra, como: "Alisei o pelo do gato"? Há uma polêmica instalada em nossa sociedade sobre essas letras antigas. A música caipira "Cabocla Tereza" narra um feminicídio. As músicas de Tião Carreiro arrepiam os cabelos da modernidade. Outro dia ouvi a dupla Carreiro e Capataz, assistindo ao canal BIS, rede paga, da Globo, cantar uma música que trata a mulher como lixo.

Mas não é só na música. A literatura brasileira está repleta de preconceitos. No livro "História de Tia Nastácia" a boneca Emília diz: "Parecem-me muito grosseiras e até bárbaras - coisa mesmo de negra beiçuda, como Tia Nastácia. Não gosto, não gosto, e não gosto!” Em 2014, foi proposta ao Supremo Tribunal Federal retirar a obra "Pedrinho" da relação de livros recomendados pelo Ministério da Educação  porque havia racismo.

O personagem Jeca Tatu também de Monteiro Lobato fazia uma figura caricata do sertanejo. O caboclo, para o autor de Urupês, era o “funesto parasita da terra”, “seminômade, inadaptável à civilização”. No final de sua trajetória literária, Monteiro Lobato tentou consertar o mal causado ao caipira, criando outro personagem, o Zé Brasil, bem mais lutador, vítima do sistema fundiário.

Hoje se faz uma ironia sobre as obras de Monteiro Lobato: quem fazia as comidas na cozinha era Tia Nastácia, mas o livro de receitas se chama "Receitas de Dona Benta".  

Saiu até uma entrevista há cinco anos, onde Antônio Fagundes se dizia contra mexer nos clássicos da literatura para adaptá-los à linguagem do politicamente correto.


Concordo com ele. Para ler um livro, o leitor precisa fazer a sua contextualização histórica: em que ano foi publicado, por exemplo. Na escola, quem pode fazer isso é o professor.

Além disso, a obra retrata a sua época, com todos os seus problemas, visão de mundo e preconceitos. Alterar uma obra, um clássico, para adaptá-la à nossa época é fazer como Rui Barbosa: queimou todos os documentos sobre escravidão (no momento da libertação)  para apagar essa vergonha de nossa história.  Conclusão: os historiadores ficaram sem fontes de pesquisa. 

A editora, se quiser fazer uma edição mais completa, pode colocar notas de rodapé nos trechos mais polêmicos, fazendo a contextualização. Mudar clássicos, livros de autores falecidos, é crime. 

Essa preocupação com o correto anda no fio da navalha (a arte é contestação) e pode nos levar a um risco: ao moralismo e à censura; portanto, torcemos para o equilíbrio que é o próximo estágio de uma mudança, conforme a teoria da vara. 

A democracia é o melhor remédio para curar os excessos. Discutir sempre, ouvir as opiniões contrárias, argumentar e contra-argumentar, convencer o outro sem vencê-lo. Assim, ninguém vai cometer crimes.  

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