AGENDA CULTURAL

18.2.22

Sempre traímos nossa memória

Delírios de Vicent Van Gogh - jornal "Estado de Minas" 

Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Araçatuba-SP

A Helena me pediu a certidão de casamento atualizada, pois tenho todos os documentos pessoais digitalizados em meu arquivo nas nuvens, segurança total. Ledo engano.

Como memória é um fator bem subjetivo em nossa vida, nem tudo que lembramos aconteceu, ainda mais que sou um sujeito animado para viver, tenho a tendência de me lembrar apenas dos bons acontecimentos e me esqueço dos ruins. Faço até uma linha do tempo deles. Como escreveu Rubem Alves, a velhice é tempo de esquecer. Quando insistimos em nos lembrar de tudo, não perdoar nada, Deus manda o mal de Alzheimer. 

Por que a Helena queria uma cópia da certidão de casamento? Atualizar um documento é fácil, difícil mesmo é renovar a parceria feita a cada dia no decorrer de décadas. Curioso, eu quis saber o motivo:

- Vou atualizar minha carteira de identidade, o RG. 

Certamente, cansou de ver aquela sua identidade de décadas atrás, de se lembrar do tempo que foi mais jovem, resolveu atualizar sua carteira de identidade (R.G.). Chamou-se à realidade.

E não achei a pasta "documentos pessoais HC". Desesperei-me. Quase uma hora de procura. Defensor da tecnologia e do arquivo nas nuvens, como explicar para meus amigos que perdi uma pasta tão importante de meu arquivo. Cadê a segurança total.

Depois de ter resolvido o problema, assisti a um documentário filosófico no canal "Curtas!" sobre "Ficção e realidade" e ouvi uma declaração de um dos escritores dizendo que a memória do computador é meio parecida à de seu dono. Será? Fiquei preocupado.  

Ainda bem que existe um aplicativo chamado "lixeira", uma espécie de inconsciente abandonado, que é a última esperança de um internauta perdido. Que alívio! Mais que depressa o restaurei.

Esse fato parece algo sem importância, mas não o é, porque a filosofia é o conteúdo do cronista. Tratada, quase sempre com ironia e galhofa, para que ela chegue ao rés do chão. 

A memória não é realidade, é a narrativa de quem conta a história de seu ponto de vista. E ela falha escandalosamente, tripudia sobre a sua e a minha subjetividade, por isso sempre digo: não confie nos relatos dos velhos sobre o passado, independente do nível cultural deles. Não mentimos; na verdade, não conseguimos nos libertar de ser um narrador personagem de nossa memória. A multilateralidade é um tributo do coletivo, e a onisciência é inerente aos deuses.  

Um comentário:

Ines disse...

Memória...sempre fui adepta do aproximadamente hoje, do q exatamente nunca. E a gente vai levando.