AGENDA CULTURAL

23.11.24

"Lan gua gem" - Tito Damazo

            


Caiu-me às mãos um livro de poesia, cujo título uso para este artigo. O poeta autor da obra se denomina Edney Cielici Dias e é araçatubense de origem. Há muito radicado em São Paulo. “Lan gua gem”, “ São Paulo, Iluminuras, 2024, 148 p. 

Solicitaram-me que apresentasse aqui no “Soletrando” um breve comentário analítico. Trata-se de um livro de poemas bastante densos, numa linguagem (“languagem”) poética movida pela propositura visível sob o signo de reabsorção e confrontação/desestruturação de quantas poéticas estabelecidas houveram até ali.

            A leitura inquisitiva, em que analiticamente se empenhou no deslindamento dos mecanismos de linguagem na construção dos poemas, ao mesmo tempo em que se procura interpretar a obra, não fez senão confirmar as impressões gerais aventadas no preliminar conhecimento da mesma.

            Isto não significa que a confrontação/desestruturação, móvel propulsor desta obra, seja a negação das poéticas consagradas, reais paradigmas de formação literária das gerações subsequentes numa delas inserido, evidentemente, o autor destes poemas. Note-se, dissemos gerações, não necessariamente “escolas” literárias ou “estilos de época”.

            No primeiro parágrafo da apresentação do livro, intitulada “Palavras iniciais da alteridade crítica”, o autor nos alerta de que “‘Languagem’ é invenção verbo-in-consciência, minha e sua. Emissão da boca que mói, de cérebro que engrena coisas voláteis, de vida que rói coisas duras.” E no sexto: “‘Languagem’ relata experiências do autor em um aprendizado por meio da poesia. Esta se apresenta em funcionalidades cumulativas: a poesia como o ‘entreter’ dos antigos, como o ‘questionar’ dos modernos’, como o ‘transcender’ dos místicos, como o ‘subverter dos subversivos’”

Assim é que a leitura dos poemas vai nos evocando nuanças de traços de estilos de épocas idos e vividos, mas também ressoam vozes em tons sutis de alguns consagrados poetas da literatura brasileira. E à medida que vamos percorrendo as veredas deste itinerário poético – cujo paradeiro é todo lugar e lugar nenhum, como o traçam todo bom poeta que o elabora calcado na “alteridade crítica” – vamos experienciando proposições poemáticas de dicções múltiplas e inusitadas, “sui generis”, cuja linguagem se veste com tonalidade simples, singela, em traços coloquiais e de informalidade; não abdicando, porém, do formal culto, complexo e mesmo intrincado, de significantes ambíguos, herméticos por vezes, que induzem a significados, mais do que conotativos, indefinidos e abertos.

Preciosidade imagética singela e coloquial, mas precisa e com acuro lítero-poético em versos concisos de métricas curtas e rimados, se pode saborear em poemas da segunda parte da obra: “Tardes existenciais”. Um exemplo, o poema “Fundo de gaveta”: “muito tempo se passou /coisas de que me esqueço /guardadas em gavetas /absurdo, grande distância /esse todo de lembranças /a identidade submergida /alguém que não morreu /que está tolo aqui na vida /e ainda – surpresa – sou eu”. Da terceira parte: “Oceanos provisórios”, o poema “Circunavegação”: “A sabedoria vem tardia /o mundo é redondo /como sempre se sabia /de porto a pós porto /tanto navegar a esmo /retorna-se a si mesmo”.

Para exemplificar “Indefinidos, abertos”, apontamos o poema “Languagem” composto de dezesseis versos mais ou menos eneassílabos escritos com palavras misturadas, embaralhadas de várias línguas: inglês, francês, português, espanhol, italiano: “peace qualy uguale [...] /hélas! Je réussis, temps perdu [...] “soltando aqua sapone perfex” [...] “nostra impossibile gramática”. E ainda os constantes poemas “paráfrase-paródicos” de traços concretistas.

Por último, mas de forma insuficiente, um traço intrínseco desta poética: o metapoema. E impossível é ante ao que apresentamos como exemplo, não evocar o célebre poema “Catar feijão” de João Cabral. Por comparação, o poeta estabelece uma relação entre o catar feijão e o fazer um poema: “Catar feijão se limita com escrever: /joga-se os grãos na água do alguidar /e as palavras na da folha de papel; /e depois, joga-se fora o que boiar./ Certo, toda palavra boiará no papel” “ [...] Ora, nesse catar feijão entra um risco: /o de que entre os grãos pesados entre /um grão qualquer, pedra ou indigesto, /um grão imastigável, de quebrar dente.” / Certo não, quando ao catar palavras: /a pedra dá à frase seu grão mais vivo: /obstrui a leitura fluviante, flutual, /açula a atenção, isca-a como o risco.”

Em “La gua gem”, o poema “Notas para escrever um poema”: “desprenda todas as letras /do vazio dos geômetras /para depois atá-las de novo / -- escrevo, crio, logo renovo // ao retratar os subjetivos /seja matador de adjetivos /e apague tudo que sobra /se algo ficar, eis uma obra (...)”  


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