Caiu-me às mãos um livro de poesia, cujo título uso para este artigo. O poeta autor da obra se denomina Edney Cielici Dias e é araçatubense de origem. Há muito radicado em São Paulo. “Lan gua gem”, “ São Paulo, Iluminuras, 2024, 148 p.
Solicitaram-me que apresentasse aqui no
“Soletrando” um breve comentário analítico. Trata-se de um livro de poemas
bastante densos, numa linguagem (“languagem”) poética movida pela propositura
visível sob o signo de reabsorção e confrontação/desestruturação de quantas
poéticas estabelecidas houveram até ali.
A
leitura inquisitiva, em que analiticamente se empenhou no deslindamento dos mecanismos
de linguagem na construção dos poemas, ao mesmo tempo em que se procura
interpretar a obra, não fez senão confirmar as impressões gerais aventadas no preliminar
conhecimento da mesma.
Isto
não significa que a confrontação/desestruturação, móvel propulsor desta obra,
seja a negação das poéticas consagradas, reais paradigmas de formação literária
das gerações subsequentes numa delas inserido, evidentemente, o autor destes
poemas. Note-se, dissemos gerações, não necessariamente “escolas” literárias ou
“estilos de época”.
No
primeiro parágrafo da apresentação do livro, intitulada “Palavras iniciais da alteridade
crítica”, o autor nos alerta de que “‘Languagem’ é invenção verbo-in-consciência,
minha e sua. Emissão da boca que mói, de cérebro que engrena coisas voláteis,
de vida que rói coisas duras.” E no sexto: “‘Languagem’ relata experiências do
autor em um aprendizado por meio da poesia. Esta se apresenta em
funcionalidades cumulativas: a poesia como o ‘entreter’ dos antigos, como o ‘questionar’
dos modernos’, como o ‘transcender’ dos místicos, como o ‘subverter dos
subversivos’”
Assim é que a leitura dos poemas vai nos
evocando nuanças de traços de estilos de épocas idos e vividos, mas também ressoam
vozes em tons sutis de alguns consagrados poetas da literatura brasileira. E à
medida que vamos percorrendo as veredas deste itinerário poético – cujo
paradeiro é todo lugar e lugar nenhum, como o traçam todo bom poeta que o
elabora calcado na “alteridade crítica” – vamos experienciando proposições
poemáticas de dicções múltiplas e inusitadas, “sui generis”, cuja linguagem se
veste com tonalidade simples, singela, em traços coloquiais e de informalidade;
não abdicando, porém, do formal culto, complexo e mesmo intrincado, de
significantes ambíguos, herméticos por vezes, que induzem a significados, mais
do que conotativos, indefinidos e abertos.
Preciosidade imagética singela e coloquial, mas
precisa e com acuro lítero-poético em versos concisos de métricas curtas e
rimados, se pode saborear em poemas da segunda parte da obra: “Tardes
existenciais”. Um exemplo, o poema “Fundo de gaveta”: “muito tempo se passou
/coisas de que me esqueço /guardadas em gavetas /absurdo, grande distância
/esse todo de lembranças /a identidade submergida /alguém que não morreu /que
está tolo aqui na vida /e ainda – surpresa – sou eu”. Da terceira parte: “Oceanos
provisórios”, o poema “Circunavegação”: “A sabedoria vem tardia /o mundo é
redondo /como sempre se sabia /de porto a pós porto /tanto navegar a esmo /retorna-se
a si mesmo”.
Para exemplificar “Indefinidos, abertos”, apontamos
o poema “Languagem” composto de dezesseis versos mais ou menos eneassílabos
escritos com palavras misturadas, embaralhadas de várias línguas: inglês,
francês, português, espanhol, italiano: “peace qualy uguale [...] /hélas! Je
réussis, temps perdu [...] “soltando aqua sapone perfex” [...] “nostra
impossibile gramática”. E ainda os constantes poemas “paráfrase-paródicos” de
traços concretistas.
Por último, mas de forma insuficiente, um traço
intrínseco desta poética: o metapoema. E impossível é ante ao que apresentamos
como exemplo, não evocar o célebre poema “Catar feijão” de João Cabral. Por
comparação, o poeta estabelece uma relação entre o catar feijão e o fazer um
poema: “Catar feijão se limita com escrever: /joga-se os grãos na água do
alguidar /e as palavras na da folha de papel; /e depois, joga-se fora o que
boiar./ Certo, toda palavra boiará no papel” “ [...] Ora, nesse catar feijão
entra um risco: /o de que entre os grãos pesados entre /um grão qualquer, pedra
ou indigesto, /um grão imastigável, de quebrar dente.” / Certo não, quando ao
catar palavras: /a pedra dá à frase seu grão mais vivo: /obstrui a leitura
fluviante, flutual, /açula a atenção, isca-a como o risco.”
Em “La gua gem”, o poema “Notas para escrever um poema”: “desprenda todas as letras /do vazio dos geômetras /para depois atá-las de novo / -- escrevo, crio, logo renovo // ao retratar os subjetivos /seja matador de adjetivos /e apague tudo que sobra /se algo ficar, eis uma obra (...)”
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