AGENDA CULTURAL

6.11.14

O que é ser de esquerda hoje?

Matheus Pichonelli –  5 de novembro de 2014


A eleição de 2014 parece ter dado um nó na cabeça de meio mundo. Meio mundo literalmente. Na campanha, o candidato favorito de certa direita – a que faz troça sobre política distributiva e pede a construção de muros para anular desigualdades – tinha como compromisso a manutenção e o aperfeiçoamento dos programas sociais. Derrotada nas urnas, parte dos eleitores, com o calendário de 1963 colado na parede, pediu socorro aos militares e aos EUA – onde, por acaso, o presidente se bateu para universalizar o acesso à saúde pública e é chamado de comunista. Tomou dois sonoros “pedala”.
O nó ficou maior quando a candidata de esquerda recém-reeleita passou a busca no mercado um nome para compor seu Ministério da Fazenda. Ou quando o seu Banco Central, e não o dos adversários, elevou a taxa básica de juros para frear a inflação. A mesma presidenta, ao voltar de férias, teceu elogios ao neoaliado PSD, partido criado por Gilberto Kassab, que já declarou não ser nem de direita nem de esquerda nem de centro nem muito pelo contrário.
Os sinais trocados são amostras de um período que, na melhor das hipóteses, dissolve a narrativa entre progressistas e conservadores, e, na pior, coloca esquerda e direita no mesmo balaio. A sensação é enganosa, e demonstra a urgência de se definir posições para além dos rótulos.
Manifestantes fazem protesto pelo impeachment da Presidenta Dilma na tarde deste sábado (1) em São Paulo.
Manifestantes fazem protesto pelo impeachment da presidenta Dilma na tarde de sábado, em São Paulo, 1.º/11/2014

Há, na literatura política, um ensaio importante de Norberto Bobbio sobre essa dicotomia. Para ele, o ponto de ruptura encontra-se na diversidade dos modos de encarar a questão da desigualdade social e de traçar seus diagnósticos e prognósticos.
Nesse sentido, a última eleição foi peculiar: se entre os candidatos as propostas eram irritantemente parecidas, entre os eleitores a dicotomia se radicalizou e consagrou estereótipos. De um lado, colocou conservadores, moderados, liberais, alienados e reacionários no mesmo barco – o que é um grande erro. De outro, transformou qualquer militante de esquerda em um jovem com a camisa do Che Guevara, ideias ingênuas sobre a bondade dos homens e cínico o suficiente para pedir a democratização da mortadela enquanto come caviar. O repertório do deboche, cada vez mais pobre, tornou ainda mais difícil a tentativa de posicionamento, quase sempre contestada sob os selos de “coxinha”, “reaça”, “golpista”, “bolivariano” ou “chapa-branca”.
Não sei exatamente como a direita fará para se posicionar dentro do campo e mostrar, por exemplo, que os integrantes da marcha-a-ré, que já pedem o impeachment da presidenta Dilma Rousseff e levantam a bandeira da intervenção militar, falam por si e não pela oposição. Mas as perguntas são legítimas: estar à direita, hoje, é rejeitar a criação de conselhos populares, pedir o retorno ao nosso período mais obscuro, ouvir o Lobão, contestar o sistema de votação (o mesmo que, no estado mais rico, elege o mesmo partido para o mesmo posto há exatos 20 anos) e colocar em dúvida a independência dos Três Poderes? É contestar os mecanismos de aperfeiçoamento da democracia usando países vizinhos como régua para confundir alhos, bugalhos, contextos e experiências?
A resposta está em aberto, mas não creio que a esquerda esteja livre de questionamentos similares. Caso contrário ela será confundida, a partir da campanha, como um espaço propício aos adeptos do culto à personalidade, que fingem não ver a parte vazia do copo meio-cheio e ajudaram a transformar a eleição presidencial numa grande gincana do Xou da Xuxa, quando meninos torciam pelos meninos e meninas, pelas meninas.
Por isso é preciso, para além dos estereótipos, deixar claro o que é ser esquerda hoje. A se fiar pelas manifestações pré e pós-eleição, cabe à esquerda, por exemplo, se contrapor ao delírio coletivo com uma bandeira aparentemente simples: a consciência histórica, ferramenta básica para entender contextos e refutar apelos a experiências autoritárias de um passado mal esclarecido. A esquerda que eu conheço, afinal, não tem saudade de tempos remotos. O que para muitos era paz e tranquilidade no passado, para a esquerda era genocídio indígena, escravidão e opressão.
Diferentemente dos saudosos do regime civil-militar, a esquerda que eu conheço, com a qual me identifico e sempre me identificarei, apoia as comissões da verdade, para que as atrocidades não voltem a acontecer. E não, a esquerda que eu conheço não ignora as atrocidades dos regimes comunistas e não milita em sua defesa. Não relativiza os crimes de Stálin nem coloca Fidel Castro entre Cristo e o Império. Ela tem a plena noção do anacronismo de um regime fechado, boicotado e sufocado – e a solidariedade com a população local não a impede de rejeitar os convites para se mudar para lá de mala e cuia. Nem de aceitar a sua ajuda no atendimento básico em nossos rincões desprezados pelos doutores locais. O que não faltam são motivos para ficar.
A esquerda que eu conheço não tem saudade de quando podia trocar migalhas por serviço braçal, e isso confere a ela uma outra diferença básica em relação à direita: ela é menos apegada a alguns imperativos aparentemente inegociáveis. Por exemplo, a maioria deles não quer ser servida por empregados. Não quer enriquecer. Não quer morrer sufocada na mesma empresa. Não quer se enforcar para pagar o carro ou a viagem do ano. Carro, aliás, não é assunto nem fetiche: é um meio. Um meio, se possível, dispensável. Assunto mesmo é espaço público, direito à cidade, humanidade das calçadas. Por isso seus militantes vão às ruas quando o sistema de transporte coletivo falha ou quando ciclistas são atropelados como se fossem papel. Não significa que não gostem de carros nem de viagens nem de bons restaurantes: apenas querem que todos caminhem e que todos se alimentem. Privilégio, para eles, é ofensa, não meta de vida. Segurança não é paranoia para justificar a própria demofobia. Ou a misoginia. E pessoas não valem menos do que oportunidades de negócio.
Os meus amigos da esquerda se questionam o tempo todo sobre seu trabalho. Questionam se estão fazendo a coisa certa, no tempo certo, por que e para quem. Meus amigos têm dúvidas. O trabalho não é o meio para a auto-consagração; é um meio para mudar, se não o mundo, a cidade, o bairro, o quarteirão, a casa. Eles não querem apertar o botão na fábrica para construir o sapato. Querem saber para onde vão os sapatos e quais os impactos da fabricação dos sapatos ao seu redor. Meus amigos de esquerda não veem necessidade de optar entre desenvolvimento e mundo sustentável: eles sabem que sem este último não haverá outra opção. Para além do lucro imediato, sabem que a destruição das florestas é a explicação direta para os períodos de estiagem, e não a má vontade dos santos.
A esquerda que eu conheço não está satisfeita com o mundo que recebeu nem quer pegar em armas para que tudo fique como está. Ficar como está significa prender alguns e libertar outros; enriquecer outros e dilapidar uns. É aceitar um país branco nas escolas e universidades e um país negro e moreno em roupas de empregado. É aceitar, sobretudo, as roupas de empregado. É aceitar que só alguns podem andar de mãos dadas com quem quiser e onde quiser. É aceitar que só alguns podem ser levados a sério no trabalho. E que só alguns, e não algumas, podem circular nas ruas sem risco de ter o corpo dilapidado.
A esquerda que eu conheço é a esquerda que respeita as minorias. Que levanta as bandeiras LGBT. Que desconfia da paz selada pela bala de borracha no centro ou pelas balas de verdade nas periferias. Que vê a dependência química como questão de saúde pública e não de polícia. Que não aceita intervenção de Estado e igreja em corpos alheios – e sabe que corpos alheios são corpos alheios, e não propriedade. Que aceita a liberdade de credo e não de ódio. Que não aceita troça sobre crença, postura ou desejo. Que vê a vida como algo mais tênue, mais tenso e mais intenso do que simplesmente prosperar, construir muros, garantir o seu, apodrecer. A vida, para eles, pode e deve ser mais interessante do que viajar para a Disney e tirar fotos com o Pateta.
São muitos os pontos, e este post não tem a menor pretensão de servir como manifesto. É só uma reação à tentativa de transformar projetos de vida em sentidos pejorativos ou autoritários. Diante da direita enlouquecida, que na falta de argumento começa a ver fantasma debaixo da cama, é dessa esquerda que espero luminosidade. Essa luminosidade não virá com berros, sofismas, reducionismos, intolerância, provocações ou convite para pegar em armas. Os golpistas são os mesmos, mas os tempos são outros. Ser esquerda hoje é, sobretudo, compreender o contexto. Mas é também não se conformar. Enquanto houver tanta assimetria entre iguais, haverá pouco a comemorar e muito a ser feito. A começar dentro de casa.

3 comentários:

Ruy Barbosa dos Santos disse...

Ótimo texto Consolaro. Também acredito que os "tempos são outros" e que 1964 não se repetirá...

Leitor disse...

BOm texto, muito embora repita os bordoes e cliches da Carta capital. Nada de novo: mais do mesmo.

MEsmos cliches juridicos - Norberto Bobbio - mesma confusao entre o ser humano, ser politicamente correto e o ser de esquerda (e a tradicional tecnica de "sou um ser humano legal, sou de esquerda").

Valeu a leitura.

A verdade é que até mesmo quem é de esquerdav - como tento ser mas está dificil - , votou na presidente, se cansa ante a descoberta de que seus representantes super legais foram corrompidos.

Mais do mesmo.

Hélio Consolaro disse...

A pedido do próprio Guido Camilo.
"Acho que você pegou todos os poucos e bons amigos de esquerda pra você. rsrsrs. Pra mim, que sou apenas um burguês, apenas reto, sem inclinação, não sobrou bondade, já tomaram todos os clichés."
Abraço
Güido
OBSERVAÇÃO: O artigo não meu, Guido, é do jornalista Matheus Pichonelli