AGENDA CULTURAL

2.10.17

Toda nudez será perdoada

Wagner Shwartz durante performance La Bête, no MAM
Antonio Luceni

Parece mesmo que houve um surto de “interesse” pelas artes nas últimas semanas no Brasil. Parece também que emergiu da sociedade uma “plêiade de especialistas” em arte que, sob o aval de Gombrich e outros teóricos como Argan, Ana Mae Barbosa e Miriam Celeste Martins, discorrem com propriedade sobre a presença da nudez ao longo da história da arte na humanidade, especialmente em relação à arte contemporânea.

SQN. Antes, isso tudo fosse possível e real, numa sociedade como a nossa que, em pleno século 21, ainda está discutindo sobre a presença ou não da disciplina de Arte como componente curricular obrigatório, em que museus e galerias de arte passam constantemente por precarização, em que editais de arte e verbas destinadas à cultura são cada vez mais exíguas, aonde secretarias de cultura (ou departamentos e/ou coordenadorias, como é mais comum em nossos municípios) só têm verba na rubrica etc. Discutir arte nesse contexto e, mais ainda, esperar que outras pessoas que sequer possuem conhecimento mínimo sobre as muitas linguagens artísticas, é esperar muito.

Portanto, acabamos ficando com duas ou três opções para entender tanta pequenez em determinados discursos, que passam pela ignorância mesmo sobre o assunto, ou seja, problema de recepção, até maldade deliberada, muito em parte reforçada pela preguiça intelectual vigente entre as pessoas e o extremismo religioso, quando não, e isso é bem comum, as duas coisas misturadas. O resultado, todos o estamos vendo: intolerância e idiotice nos comentários.

Mas por que determinada nudez é perdoada e outras não? Por que a “família tradicional brasileira”, guardiã dos valores morais da sociedade, tolera bundas, peitos e paus dentro de seus lares, com pais, filhos e idosos assistindo a tudo caladinhos e até com certo fetiche na novela das oito, e se indigna com um homem nu, ou uma ator trans interpretando uma personagem em locais próprios (museus e teatros), com placas anunciando nudez, panfletos e cartazes explicitando teoricamente o trabalho a ser desenvolvido ali, com pessoas das mais capazes, estudadas, com propósitos argumentados em dissertações, matérias em revistas especializadas e tals? Por que todo começo de ano há mulheres e homens nus e seminus praticamente vinte a quatro horas em cada “lar das famílias tradicionais brasileiras” e ninguém faz protesto? Por que tantas famílias “tradicionais”, guardiãs da moral levam seus filhos, menores de idade em sua maioria, a puteiros para serem iniciados sexualmente e isso tudo é normal para elas? Por que há tanta exploração sexual de menores nas muitas cidades do País, sobretudo nas turísticas e não há protesto sobre isso; em sua maioria, com homens adultos, cinquentões, da “família tradicional brasileira” como protagonistas dos abusos e todo mundo fica calado? São algumas perguntas para todos refletirmos sobre o tema. O que vale dizer aqui é que nos casos citados sobre arte não há intenção pornográfica ou pederasta, como queiram sugerir alguns. São contextos e intenções bem diferentes, como podemos ver.

A nudez sempre foi tema de artistas dos mais variados lugares e tempos dentro da história da humanidade. A começar pelos nossos ancestrais primitivos, como a vênus de Willendorf, passando pelas civilizações de Roma e Grécia antigas (somente para citar como exemplos, amuletos em forma de pênis alados para os romanos e as muitas vênus para os gregos) até os renascentistas (Botticelli, Da Vinci, Michelangelo etc.), os impressionistas (Monet, Renoir, Degas, Lautrec etc.) e as performances com modelos nus de Yves Klien, Marina Abramovic, ou ainda as esculturas fálicas de Louise Bougeois e as fotografias ousadas de Robert Mapplethorpe, para citar alguns dos contemporâneos.

Na boa; para mim, quem tem problema de se relacionar com a nudez, especialmente em trabalhos voltados para o contexto artístico, precisa revisar fortemente sua relação com esse tema e, em alguns casos, procurar tratamento profissional.

*Antonio Luceni é mestre em poesia, artista visual e professor de Artes no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo – IFSP.

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