AGENDA CULTURAL

5.2.20

A casa que me viu envelhecer

Família reunida para tirar fotografia - Tarsila do Amaral

Hélio Consolaro*

Moro na mesma casa há quase 40 anos. No decorrer do tempo, fui ajeitando o lugar com os palpites da Helena e dos palpiteiros de plantão. Tentei dar uma cara moderna para uma casa antiga. Ela fora construída por gente bem simples.

Nunca morei sozinho na casa. Já deixei a Helena morando sozinha nela por quase um ano. Não aguentei ficar sem as duas e voltei. Na volta, a hera que tomava conta do muro lateral havia sido extirpada, foi um desgosto.

Para esta casa ser minha, passada no papel, com escritura e tudo, deu muito trabalho. Até o ex-presidente militar João Figueiredo quis tomá-la de mim, suspendendo a transferência de contratos de gaveta e subindo demais a prestação, enquanto o presidente civil Fernando Henrique me entregou a danada, liquidada, paga, em troca de uma mixaria de FGTS que eu tinha na Caixa Econômica Federal. Depois diz a ignorância que os políticos não têm nada a ver com nossas vidas.

Ter uma casa própria, sempre foi um sonho dos quatro filhos de Seu Luís e Dona Augusta. Sempre morávamos de favor ou de aluguel. Enquanto solteiro, passei por 16 casas, éramos caracóis, carregávamos a casa nas costas.

Com esse histórico, vivi em 16 lugares durante 20 anos e em quase 40 anos, num só lugar, numa só casa. Parei de ser nômade em 1982. Esta casa me viu envelhecer. Criei raiz:

- Daqui ninguém me tira!

Ouvindo a música "Meu reino", do Biquíni Cavadão, com certo atraso, ela me tocou com sua letra: "Atrás da porta / Guardo os meus sapatos / Na gaveta do armário / Coloco minhas roupas / Na estante da sala / Vejo muitos livros / E a geladeira conserva o sabor das refeições". Na minha, há um cafofo por onde me ligo com o mundo, é o canto cibernético da casa, onde livros e roteador se misturam.

Agora, arranjei a casa para receber os netos. O oitizeiro de mais 30 anos dá a sombra, edícula para o churrasco, cobertura, cama elástica, uma piscina de acrílico montável e desmontável. E ainda há espaços para alguns vasos. Pronto. Ela se transformou num rancho recreativo.

Arrumado, desarrumado, pobre ou chique, todos precisam de seu canto, de uma caverna. A minha casa é uma extensão de meu corpo, meu canto, meu reino, minha cidadania. Nela, somos família.

*Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Membro das academias de letras de Araçatuba-SP, Andradina-SP e de Itaperuna-RJ

Um comentário:

Maria zei disse...

Cada crônica do prof. Hélio sempre mexe com momentos vividos pois ele tem o dom de, através de palavras, nos transportar ao passado. Na nossa faixa etária, quem não tem recordações das casas que moramos?
Linda crônica prof.