AGENDA CULTURAL

10.1.07

A velha que juntava coisas

Hélio Consolaro

O ato de juntar parece inerente ao ser humano, amante dos substantivos coletivos. Todos juntam alguma coisa, nem que sejam frustrações. Os jovens de hoje colecionam CDs, joguinhos de computador, mas já colecionei figurinhas, marcas de cigarro. Meu mano colecionou moedas de metal; também já fui filatelista. Menininha, minha filha, juntava latinhas de cerveja.

E essa mania de juntar prolonga-se para a vida adulta com disfarces. Nessa fase da vida, a mania de juntar parece coisa séria, não é mais hobby.
O avarento coleciona dinheiro e bens, mas há também os colecionadores de mulheres. O leitor de livros de auto-ajuda quer juntar felicidades. Alguns de meus leitores, por exemplo, colecionam meus escritos.

Não há jeito, caro leitor, de falar que você não coleciona nada, pois há pessoas que juntam anos, morrem com mais 90. Até o bichinho que vive apenas um dia é também um colecionador, pois juntou horas, minutos e segundos.

Dona Inês, a personagem de hoje, não fugia à regra, mas a mania de juntar coisas em sua casa se aguçou com o avançar da idade. Tinha um medo danado de passar falta das coisas, parecia ter vivido período bravo de carestia.

Depois que ficou viúva, com o sentimento de perda, sua psicose aumentou significativamente.

Os filhos implicavam, os netos também. A casa da velha era infreqüentável, tal era a bagunça de amontoados. Tinha três ferros elétricos. E quando alguém da família precisava de algum, não ia pegar um dos três, comprava outro, para não mexer no estoque.

E família para ela eram apenas os descendentes. Se cunhada ou irmã pedisse um ferro elétrico, ela negava. Respondia:

- Vai trabalhar e comprar!

Como tinha sido costureira, comprava ainda aviamentos, embora não exercesse mais a profissão. Gostava tanto de coisa velha, que se casou novamente aos 78 anos com sua primeira paixão, ex-namorado, que tinha 82 e estava com mal de Parkinson. Na verdade, pegou o velho para cuidar.

Na pequena cidade onde morava, qualquer pessoa que dispunha de algo velho em casa, em vez de jogar fora, ia vender à sua porta, e ela comprava a velharia, pois soube juntar bons planos de previdências e gastava todos os seus proventos nesses regalos.

Quando ia comprar algo na loja, se achava barato, comprava de meia dúzia pra aproveitar o preço. Assim, a velha casa onde morou desde o primeiro dia de casamento, tinha os quartos lotados.

Seu quarto de primeiras núpcias ficou repleto, ela só usava a cama. Ela mudou-se para o outro, que era da filha que se casara. Assim ela ocupava os cômodos que os filhos iam desocupando, e lotava cada um deles. Não fazia descarte de nada. Já dormia na sala, pois foi expulsa pelas coisas dos três quartos da casa.

Dona Inês se esqueceu de que ela fazia parte de uma coleção. Apesar de sua idade avançada, considerava-se eterna. Não sabia que o coveiro juntava defuntos e que Deus colecionava almas. E foi-se.

A desocupação da casa foi uma festa. Ninguém chorava a morte da velha, apenas riam das coisas que ela guardara, conforme eram encontradas.

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