AGENDA CULTURAL

4.11.07

Um livro de Moçambique


Hélio Consolaro

Conheci Mia Couto em Campinas, no 14.º Congresso de Leitura, realizado pela Associação de Leitura do Brasil. Como tiete, comprei o livro “O último vôo do flamingo” e corri atrás de um autógrafo. Ele era um dos palestrantes do evento.

A editora Companhia das Letras manteve o título original, com português de Moçambique. A palavra “voo” do título aparece sem acento.

Confesso que sinto certa inveja dos escritores africanos, porque é mais fácil ganhar projeção num país em que a literatura está incipiente e há poucos escritores, a concorrência é menor e o escritor ganha status de representar um país na literatura mundial. Nesse comentário, não entro no mérito da obra, apenas analiso as circunstâncias.

Há a própria narrativa: tudo acontece na cidade imaginária Tizangara. Corpos de soldados estrangeiros que começam a explodir. Um oficial das Nações Unidas, o italiano Massimo Risi é destacado para investigar o caso. Tudo é contado pelo tradutor destacado pelos poderes oficiais da vila para acompanhar o italiano.

Com magia, o autor mistura as culturas tradicionais africanas e a cultura ocidental, o português colonizador com as variantes dialetais da população moçambicana. Há até um glossário no final do livro. Além disso, existe o uso de máximas, desconstrução de provérbios e ditos populares. Mia Couto desarranja a linguagem. Tudo isso, às margens do realismo fantástico latino-americano, como exemplo disso Temporina, com o rosto de velha e corpo de moça, mas que, em “flagrante de amor, rejuvenescia” e uma tia que, após morta, se transforma em louva-a-deus.

O humor e a ironia estão presentes no livro, por exemplo, quando um pênis decepado é achado, então, chamam a prostituta Ana Deusqueira, conhecedora do mundo masculino, para “identificar o todo pela parte”.

A narrativa poética é carregada de lirismo, como a mãe do tradutor que conta a estória dos flamingos que empurravam o sol para que o dia chegasse ao outro lado do mundo. Em outra passagem, Massimo Risi passa por um terreno minado como “Jesus se deslocou sobre as águas”.

No final, Mia Couto redimensiona o olhar sobre Moçambique, um dos países mais pobres do mundo, recém-saído de três décadas de guerra civil, que matou ao menos 16 milhões de pessoas nesse período. O livro foi escrito em 2000, quando se comemorava os 25 anos de independência de Moçambique.

Gostei muito de ter lido o livro e recomendo a leitura a meus 33 leitores. Ele me pareceu um Guimarães Rosa menos sofisticado, mais fácil de ser lido (230 páginas, Companhia. das Letras, R$ 39,51).




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