6.1.08
Povo senzaleiro
Hélio Consolaro
O boteco Bate Forte estava de ressaca nesta sexta-feira, Dia Nacional da Cerveja. Depois de tanto beber nas duas últimas semanas do ano – Natal e Ano-Novo – os barrigudinhos estavam enfastiados. Havia gente gritando:
- Um guaraná Paulistinha pro degas aqui!
Até o Faca Amolada estranhou. Subversivo, tudo bem, está proibido pelo médico de ingerir bebida alcoólica. Mimoso se converteu, é evangélico. Mas Burguês pedir guaraná Paulistinha... E por força do hábito, jogou um gole para o santo. Santo Onofre, lá do seu nicho, chegou a fazer caretas com aquela coisa doce.
Seu Sugiro viajou. Dona Assunta comandava a cozinha, servindo alguns salgadinhos. A dupla Marmita & Passa-Fome entoaram músicas de Folia de Reis, já que no domingo comemoram-se os Reis Magos.
O Dr. Duas Caras chegou, sentou-se. Desapertou o nó da gravata, passou as duas mãos no cabelo embebido de gel. Fez o piparote costumeiro, e Faca Amolada lhe trouxe duas cervejas: uma clara e outra escura.
Magrão fez-lhe a pergunta do dia, com o doutor ainda sóbrio:
- Você acha que uma primeira-dama é mais importante do que o cantor Jair Rodrigues?
- Os dois têm a sua importância. Um querer ser mais importante do que outro é mesquinhez.
Dr. Duas Caras bebeu três cervejas, estufou as veias do pescoço. Isso era sintoma de que Magrão devia lhe fazer novamente a pergunta. E foi feita. O advogado respondeu com as palavras molhadas, escorregadias:
- Aquele povo do palácio é meio senzaleiro, possui o rei na barriga. É um povo meio antigo, é do tempo em que se perguntava: “Você sabe com quem está falando?” O cantor fez bem em não dar confiança a tanta arrogância, alegrando o povo.
E continuou:
- O artista fica no coração do povo. Políticos medíocres e suas mulheres desaparecem, quando muito, têm o retrato numa galeria.
Miltão quis saber de quem o Dr. Duas Caras estava falando. Este explicou que era de qualquer prefeito e de qualquer primeira-dama. E chutou o pau da barraca:
- Pode ser daquele a quem defende. Se tirar uma foto do saco escrotal dele, sua mão sai grudada, em primeiro plano.
Tudo estava para um dia tranqüilo no Bate Forte, mas aquela provocação do Dr. Duas Caras fez do boteco uma praça de guerra. O Sr. Lamentáveis, com sua magreza, ficou dependurado nas hélices do ventilador de teto pelo suspensório.
E tudo foi acalmado com o grito da paz:
- Rodada por conta da casa!
Caneta Louca marcava dobrado nas comandas, Faca Amolada enchia os copos dos barrigudinhos, que ajeitavam a roupa amassada do corpo depois da confusão.
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