AGENDA CULTURAL

22.7.08

Morreu a vaidade


Hélio Consolaro



Morreu Dercy Gonçalves. Viveu 101 anos, a exemplo de meu ex-professor Lauresto Rufino, que além do magistério exercia o ministério de pastor. Imagine! Ela era mais velha que Araçatuba.

Em 1962, no antigo I.E., quando eu estava na quinta série, Lauresto já era “velho”, e só morreu 40 anos mais tarde. O defeito dele era dar passinhos curtos ao andar e fazer dos filhos são-paulinos fanáticos. Os defeitos de Dercy, os sabemos todos de cor. Curtir os próprios defeitos é o diferencial de quem sabe viver.

Parece que viver muito é bom, mas no meio do caminho há a velhice, então, a coisa se complica, como lamenta meu amigo José Hamilton da Costa Brito. Ver o seu próprio corpo se degenerar a passos largos, sentindo que está na hora de dar lugar a outro.

Contardo Calligaris, cronista da Folha de São Paulo, escreveu: a partir de certa idade, vivemos apenas para nos manter vivos, de médico em médico, fazendo dietas, cuidando-se exaustivamente.

O doutor Shigueo Watanabe, professor de Física da USP há 63 anos, quando foi homenageado pela Associação Cultural Nipo-Brasileira de Araçatuba no dia 9 de julho deste ano, por ocasião das comemorações dos 100 anos da imigração japonesa, assim se expressou no seu discurso de agradecimento:

- Eu esperava voltar à minha terra natal, Araçatuba, encontrar antigos colegas de escolas, mas quem é octogenário não tem esse privilégio.

O longevo, de repente, olha de lado e não vê seus contemporâneos, todos caíram, sobrou apenas ele. Com certeza, o sentimento é contraditório: alegria pela sobrevivência e tristeza pela solidão.

Em 1991, aos 84 anos, Dercy desfilou no carnaval carioca pela escola de samba Viradouro, após a convalescença de ferimentos sofridos num desastre automobilístico. Foi elevada até o alto do carro alegórico por um guindaste. Tirou a blusa e mostrou os seios octogenários no sambódromo do Rio de Janeiro. Como a dizer: ainda sou mulher.

A porra não saía de sua boca. Há até uma piada. Quando nasceu, não chorou, gritou:

- Porra!!! Caralho, vai se foder, seu médio filho-da-puta!!! Porra!

Dercy passou longos anos cuidando de si, para que parecesse inteiraça, mas também não descuidava de estar na mídia, pois as luzes dos holofotes eram o alimento de sua vaidade. E a última que morre não é a esperança, mas a vaidade. Sem esta, sucumbimos.

Ela fazia tipo, vendia a velhice feliz para todo o Brasil. Este croniqueiro quer ter dinheiro para comprar essa idéia. Para ter o cofre cheio, não pode se poupar.

5 comentários:

Anônimo disse...

�...Dercy passou longos anos cuidando de si...
...Parece que viver muito � bom, mas no meio do caminho h� a velhice...
Imagine! Ela era mais velha que Ara�atuba. ...

Que maravilha, H�lio!
O que n�o faz a pr�tica!!!!! Ou o mestre?

Wanilda.

Anônimo disse...

... �Este croniqueiro quer ter dinheiro para comprar essa id�ia. Para ter o cofre cheio, n�o pode se poupar.� ...

Aqui ent�o, foi t�o r�pido pr� minha cabe�a, que no momento nem " fechou".

M�ximo!

Wanilda.

Anônimo disse...

Deus não precisou de dinheiro e vive até hoje. deuses precisam, os plebeus também, e morrem.

Anônimo disse...

Penso que a Dercy era um clown indefinido...

Ventura Picasso disse...

Só vc/consa: jogar na mesma panela dois opostos absolutos - Lauresto Rufino e Dercy Gonçalves - essa perspectiva só poderia ter o ponto de fuga em Araçatuba, claro numa visão Consolariana...