AGENDA CULTURAL

22.1.11

Os dois lados do espelho


Conheça a trajetória de Fausto Nilo, arquiteto responsável por grandes obras e também autor de pelo menos 80 das canções mais conhecidas da música brasileira contemporânea


Revista Forum
Por Pedro Alexandre Sanches

Fausto Nilo
Quando anda pela rua, passa por construções que ele mesmo projetou. Quando anda pela rua, escuta no ar letras de canções que ele mesmo escreveu. Fausto Nilo é conhecido pessoalmente por poucos de seus conterrâneos, mesmo estando esparramado pelo chão e pelo ar do Brasil. A discrição oculta e protege uma trajetória caudalosa, seja na profissão oficial, diplomada, de arquiteto e urbanista, ou na carreira paralela, como compositor popular.

Na segunda profissão, esse cearense de Quixeramobim, hoje com 66 anos, calcula ter escrito em torno de 400 canções em 38 anos, 80 delas amplamente conhecidas. Deu letra a melodias de músicos tão diversos quanto Raimundo Fagner, Moraes Moreira, Baby Consuelo, Lulu Santos, Ritchie e Zeca Baleiro. As vozes de Núbia Lafayette, Nara Leão, Gal Costa, Ney Matogrosso, Elba Ramalho, Maria Bethânia, Simone e Fábio Jr. são algumas das que frequentaram seus versos. Ilustre anônimo quando anda livremente por aí, é respeitado o suficiente para ter merecido, no final de 2010, o disco-homenagem Quando Fevereiro Chegar – Uma Lírica de Fausto Nilo (Biscoito Fino). Ali, 12 de seus temas mais populares são reinterpretados por Elza Soares, Caetano Veloso, Carlinhos Brown, Fernanda Takai, Jorge Vercillo e outros.

A identidade dupla o torna, talvez, um arquiteto de canções, e/ou um compositor de edifícios públicos. Não é imediata a compreensão de como cada uma de suas profissões interfere na outra, mas as duas linhas paralelas devem se cruzar em algum lugar, nem que seja no infinito. “Sempre fui muito rigoroso para não tornar a canção um texto intelectual, racional. Uma canção precisa ser boa de cantar”, explica o morador de Fortaleza durante uma visita a São Paulo, não muito distante da estação Santa Cecília do metrô, que ajudou a projetar, e das estações Marechal Deodoro e Consolação, cujos anteprojetos tiveram sua participação.

Fausto prossegue, dos dois lados do espelho. “Tem momentos de uma melodia que, se você não aproveitar com a frase ou a palavra adequada, acabou. Por melhor que seja, não vai acontecer nada. No urbanismo, uma esquina seria o importante. Se naquela esquina o café não está bem configurado e visível, aquele bairro naquele pedaço fica deprimido, já não vai ser legal. A mesma coisa é a relação de palavras com a melodia para formar uma canção”.

A mistura de fama com anonimato lhe tem proporcionado experiências ímpares, como a que descreve como a mais “impressionante” que viveu, em 1980, quando Moraes Moreira invadiu o carnaval baiano sob seus versos cearenses, em “Chão da Praça” (“tem que dançar a dança/ que a nossa dor balança o chão da praça”): “Cheguei a Salvador na sexta-feira de carnaval, fiquei no hotel São Bento, perto da praça Castro Alves. Meu quarto era de frente para a rua. Eu estava sonhando que estava na Bahia com um carnaval qualquer passando com a minha música. Quando acordei, era realidade. Saí de chinelo e bermuda, era uma caminhonetezinha do subúrbio, com alto-falantes. Fui atrás da minha música”.

De modo análogo, o relativo anonimato permitiu vivências avessas a essa, como uma proporcionada por “Coisa Acesa” (1982), também difundida pela voz de Moraes. “Estava na gravadora com o diretor, Mariozinho Rocha, chegou Beto Guedes, que eu não conhecia. Tocou “Coisa Acesa”, e de repente Beto diz: ‘Que música chata, essa porra toca no rádio, eu não aguento essa merda’. Mariozinho falou: ‘Cara, este aqui é o autor da letra’. Ele pediu desculpas, eu disse: ‘Não, cara, não se preocupe, todo mundo acha a música dos outros boa ou ruim’. Me abraçou, foi momento de sinceridade livre”, ri. “Chega, nego, nego, nego, nego, nego, para/ chega, nego, nego, nego, nego, teu chamego para mim/ tudo que me dá sossego é assim/ chega, nego, nego, nego, vem pra mim”, martelavam então as ondas do rádio, em compasso de frevo elétrico.

Seu apogeu pop se deu no início dos anos 1980, quando fazia Gal Costa afirmar que “pra libertar meu coração/ eu quero muito mais que o som da marcha lenta” (“Bloco do Prazer”, 1982), Lulu Santos cantar que “quero te conquistar um pouco mais e mais a cada dia/ satisfazer tua vontade também me sacia” (“Tudo com Você”, 1982) e Pepeu Gomes suingar que “a flor do desejo e do maracujá/ eu também quero beijar” (“Eu Também Quero Beijar”, 1981).

Outro sucesso estrondoso foi a surreal “O Elefante” (1981), que invadiu a faixa infantil na gravação pilotada pelo parceiro roqueiro-guitarrista Robertinho de Recife. “Um elefante brinca muito mais/ e uma menininha vai correndo atrás/ (...) de que país vem o meu carnaval/ se o Oriente nasce em meu quintal?”, perguntava a jovem cantora Emilinha, secundada por um coro de crianças. Ainda em 1981, Simone emplacava dois temas de massa de Fausto, “Pão e Poesia” (“felicidade é uma cidade pequenina/ é uma casinha, é uma colina”) e “Pequenino Cão” (“e só te peço, amor/ não me abandones mais”). “Pequenino Cão” é uma letra totalmente absurda. No lançamento, tinha um pôster enorme, Simone deitada com um poodlezinho”, diverte-se.

Felicidade era uma cidade pequenina, e a veia musical surgira muito antes do sucesso consumado, ainda no final dos anos 1960, quando entrou para a faculdade de Arquitetura em Fortaleza. “Cheguei a ser vice-presidente do DCE, numa chapa de 1968. Dá impressão que eu era o maior agitador, mas não. A lembrança que tenho daquilo é terrível, as decisões sobre passeatas...” O presidente do DCE de que Fausto era vice era um conterrâneo de Quixeramobim, chamado José Genoino.

No ambiente universitário, primeiro em Fortaleza e a seguir em Brasília (onde foi ser professor da UnB, em 1971), começaria a interagir com a riquíssima galeria de futuros compositores que viria um dia a ser conhecida grupalmente como Pessoal do Ceará (embora não fossem jamais um grupo coeso, segundo ele): Fagner, Belchior, Ednardo, Petrúcio Maia, Rodger Rogério, Stélio Vale, Graco, todos seus futuros parceiros. “Por coincidência, vários dos meus amigos do Ceará foram para Brasília nessa época, por razões distintas”, diz.

“Belchior é meu colega de colégio desde a segunda série ginasial”, lembra. “Depois foi ser frade, desapareceu. Um dia o encontro no centro de Fortaleza, ele com uma barba e batina. Dois anos depois ele me aparece na faculdade – estava fazendo Medicina – e começa a mostrar inúmeras canções, aquelas todas que gravou no começo. Foi a maior surpresa, porque nunca ouvi falar que ele tocava violão ou gostava de canções.”

Algo parecido acontecia com o próprio Fausto, que sacou escritos que não mostrava a ninguém quando provocado pelo jovem Fagner, que arquitetava a mudança de Brasília para o Rio, já ambicionando se firmar na MPB. Composta por ambos, a fabulosa “Fim do Mundo” (“parece que chorando eu chego perto, e nós nesse deserto/ filhos nascidos do sol, da noite, da lua/ parece o fim do mundo, o fim”) foi sua primeira música gravada, pelo próprio Fagner, mas também por Marília Medalha. “Ela era uma cantora de muito prestígio, gravou num disco com arranjos de Rosinha de Valença, muito interessante. Rapaz, fiquei maluco quando ouvi, porque eu tinha minha vida como arquiteto e professor da universidade, e aquilo começou a me perturbar um pouco. Terminei traído por isso, fui fazer outras canções, `Dorothy Lamour`, que foi gravada pelo Ednardo.”

Fagner seria o principal impulsionador de Fausto como compositor. Cantor e compositor até hoje subvalorizado, gravou temas históricos como “Retrato Marrom” (1975) e “Postal de Amor” (idem, cantada em dueto com Ney Matogrosso) e cravou diversas baladas agrestes nas paradas de sucesso do Sudeste: “Flor da Paisagem” (1977), “Frenesi” (1979) e o tema de abertura de novela “Pedras Que Cantam” (1991). “Quem é rico mora na praia/ mas quem trabalha nem tem onde morar”, ribombou a Globo em Pedra Sobre Pedra. “Cartaz” (você me dá prazer, você me dá cartaz/ ...se você vem comigo eu não choro mais”), de 1984, anda popularíssima em pistas de dança da São Paulo de 2010.

À parte possíveis rivalidades de grupo e de região, o cearense Fagner e o baiano Moraes Moreira, ambos pós-tropicalistas, seriam seus dois principais intérpretes/parceiros – com o segundo, Fausto foi à abertura da novela Roque Santeiro, com “Santa Fé” (1985): “Deus e o diabo na Terra/ sem guarda-chuva, sem bandeira, bem ou mal”. O cacife pop acumulado lhe permitiu dividir com Fagner a produção do audacioso (e muito cearense) disco Romance Popular (1981), de Nara Leão, e participar da produção do monumental Traduzir-Se (1981), uma imersão de Fagner na utopia pan-americana, em confronto com a cultura yuppie norte-americanizada que já corroía tudo que encontrava pela frente.

Fagner, além de artista, era diretor do selo Epic, na gravadora CBS, e usava o posto para inserir sua turma na casa. “Era excesso de poder, naturalmente pusemos todos nossos amigos que estavam desempregados, Zé Ramalho, Geraldo Azevedo, todo mundo, até que houve uma intervenção e tomaram de volta o selo Epic, tiraram de nossas mãos.” Do disco coletivo Soro (1980), por exemplo, saiu um tema de profundidade ímpar, “Coração Condenado”, gravado majestosamente pela cantora popular (ou cafona, diriam os mais reativos) Núbia Lafayette, em dueto com o próprio Fausto – cantor bissexto, o arquiteto-letrista tem gravado discos discretamente, sendo o mais recente Fausto Nilo (2009), onde pulveriza em suavidade o estrondo “fagneriano” de “Pedras Que Cantam”. “Torturar meu amor incendeia/ o desespero é o gás/ corre nas ruas, nas veias/ pro coração dos jornais/ (...) um coração na cadeia/ reflete a teia mordaz/ que a minha boca receia/ e meus olhos só dizem jamais”, bradava Núbia, parecida em tudo e em nada com a geratriz bossanovista-engajada-tropicalista-emepebista-cafona Nara Leão.

“Quem vê as entrelinhas das minhas letras percebe que não sou inculto, mas não faço da letra de música uma oportunidade para um manifesto de grande importância”, olha-se no espelho, certamente se referindo a tipos de versos mais “Bloco do Prazer”, menos “Coração Condenado”.

Fausto diz que muito demorou a compreender que o “pessoal do Nordeste” era, sim, tratado com preconceito dentro da MPB. “Quando eu era pequeno, nós éramos do Norte. Essa coisa do Nordeste vai aparecer com a Sudene, Juscelino... É como se dissesse ‘sudestinos’ para o Sudeste. Tive uma infância de fartura no interior, com a casa simples, porém recebendo todo mundo com lençol cheiroso e comida farta. Mas todo mundo acha que vivemos numa realidade desesperada”, afirma.

“Isso continua na TV, em reportagem dizem que os nordestinos comem rato. Não é rato, é um roedor do mato, um preá, todo mundo come, não é ratazana. Já é um arquétipo. Aparece um menino na TV brincando com ossos de boi, e todo mundo só falta chorar. Todo garoto do Nordeste brinca com os boizinhos. Não havia brinquedo industrial, eu brinquei, não precisa chorar, isso é normal, com seca ou sem seca. Percebi isso já bem mais maduro na minha vida, que há preconceito. Sou muito amigo da (jornalista) Regina Echeverria, namoramos um pouco no passado, certo dia ela lembrou: ‘Gostei de ti porque conheci um nordestino que conversava coisas inteligentes’. Pô, a Regina”, ri.

Arrefecido o fogo pop dos anos 1980, Fausto retornou a Fortaleza e à sua profissão primeira. De lá para cá, reformou praças, fez planos diretores para cidades do interior e projetou o Centro Cultural Dragão do Mar, iniciado no governo Ciro Gomes. Conheceu “garoto” o atual governador, Cid Gomes, mas se diz arredio a convites para ocupar cargos públicos. Isso ele não quer, apesar de ideias de urbanista que parecem as de um compositor (ou de um político): “Quando voltei ao Ceará, voltei com a ideia de fazer arquitetura de uso público, fosse ela privada ou pública. O problema atual das cidades é que vivemos indo para contêiners fechados. Shopping center, fábrica, colégio. O espaço público sofre com isso, ele começa a morrer. A passagem de vila, de cidadezinha, para metrópole corresponde à desestruturação da vida comunitária”.

Devagar, como é de seu método, começa a chegar mais perto do que quer dizer. “Caso típico é uma favela ou um bairro popular distante. O BNH fez questão de apoiar um desejo da elite, de construir sempre em terrenos muito distantes, baratos, por dois motivos: negociatas com interessados em vender o terreno por um valor maior do que merecia ter e, ao mesmo tempo, uma vã esperança da elite de que os pobres, mais longe, lhe dariam uma vida calma, o que não é verdade. É o contrário”.

E chega, enfim, ao núcleo do vulcão: “Esse tipo de exclusão espacial deliberada produz populações adultas que na jornada de trabalho se ausentam. Essas comunidades, durante o dia, são formadas de crianças abandonadas e velhos. É sabido que você não forma um cidadão sem o ciclo vital em convivência, bebês, crianças, adolescentes, adultos jovens, adultos e velhos. Da interação deles todos é que se forma o cidadão. Na minha opinião, a falta disso é uma contribuição muito grande para o clima de barbárie que temos vivido, apesar de o novo bárbaro usar celular e BMW”.

Talvez sem pretender, ao explicar a arquitetura ele explica seu apreço pela música de comunicação direta com um público que, do outro lado do espelho, se mostrará à prova de fronteiras de classe, renda ou preconceito. Talvez seja por isso que ele, influenciado por compositores ultrapopulares da estirpe de Adelino Moreira, Jair Amorim e Herivelto Martins, deixou Núbia Lafayette cantar versos que talvez fossem para Nara Leão (“condenado é quem desencadeia/ silêncio de catedrais/ nestas paisagens tão feias/ de pesadelos iguais/ que o pensamento pranteia/ porque só pensa e não faz”), e vice-versa. É que, embora pareça cultivar zelosamente sua privacidade, Fausto Nilo sempre se utilizou das ferramentas da arquitetura e da música popular para declarar amor ao espaço público, à festa, à convivência, ao mundo em movimento e à livre comunicação.


Ouça "Cantando e chorando", parceria de Geraldo Azevedo e Fausto Nilo

Um comentário:

Germana disse...

Muito bom saber tudo isso!