AGENDA CULTURAL

23.4.11

CALIGRAFIA: a arte de traçar belas letras


Por Adriana Abujamra em 19/4/2011
Reproduzido do jornal Valor Econômico, 15/4/2011
Numa manhã de março, o professor Antônio de Franco Neto, de 62 anos, trabalhava em sua escola de caligrafia. Diversas pastas empilhadas – lições de alunos – formavam algo parecido com um castelo sobre a mesa perto da entrada. Atrás da mesa estava seu filho único, Antônio Ramondetti de Franco, de 27 anos, porte de guarda-costas e quarta geração de professores da família.

O fundador da escola, o já morto Antônio de Franco, "observava" tudo emoldurado num quadro na parede ao fundo. Faz 96 anos que a família se dedica com afinco ao ensino da arte da bela escrita. Ninguém fugiu à sina. Os homens da família têm vários outros traços em comum. Quase todos se chamam Antônio, cursaram faculdade de direito e jogam futebol de botão.

A Escola de Caligrafia De Franco continua atraindo alunos, mesmo no mundo de hoje, onde escrever no teclado é mais comum do que escrever à mão. Para quem anuncia o sepultamento da caligrafia, Antônio-pai rebate: "Decretaram o fim da pintura quando inventaram a máquina fotográfica. Mas, veja só, uma foto de paisagem sai perfeita, mas a pintura a óleo continua valendo mais. O trabalho manual é incomparavelmente mais bonito do que o impresso, que é frio."

As lições são entregues aos alunos dentro de canudos de papelão dourado com o emblema da escola. Luciane Ribeiro estava lá por recomendação do patrão do escritório onde é secretária. Mordendo o canto da boca, como se isso fosse ajudar no desenho das letras, começou a preencher uma folha com a frase: "Os que não tiverem força de vontade fracassarão sempre".

Ela seguia as instruções básicas do método De Franco, de segurar a caneta com o polegar e o dedo médio sem se tocarem e o dedo indicador comandando o movimento. Além disso, evitar torção no pulso, o que traz cansaço ao escrever, e colocar o peso do corpo sobre o braço que não escreve sobre a mesa. Há ainda vários detalhes a observar, como a importância de deixar as pernas do "M" paralelas ou se lembrar de puxar um bocadinho o traço nas pontas superiores do "V" e nas pernas do "M".


Frases edificantes
Num quadro na parede é possível ler o depoimento de agradecimento do ex-senador do Paraná Leite Chaves, que foi aluno dos De Franco. Ele conta o motivo que o levou às aulas de caligrafia: "Certa feita estava eu na tribuna do Senado, proferindo um discurso, quando recorri a anotações manuscritas que não fui capaz de decifrar".

A porta, que ostenta um brasão da família feito pelo fundador, abriu-se e entrou mais um aluno daquela manhã, Dario Azevedo, um advogado de 57 anos. "Tenho aulas de caligrafia por puro diletantismo. Estou aprendendo russo e quero também conseguir escrever na nova língua." Azevedo tem em casa 15 canetas-tinteiro. "A letra costuma sair melhor com o aparato antigo."

Antônio de Franco salienta que Azevedo é um perfeccionista, aliás, uma característica comum entre os calígrafos. "São pessoas que gostam de tudo bem-feito, não só na escrita, mas no vestir, no falar. Porque, antes de tudo, uma letra bonita é sinal de educação, é um cartão de visita."
Espia o bloco no qual a repórter rabisca suas anotações e prossegue. "Não que quem não tenha letra bonita não tenha educação, mas escrever com letra feia é quase como falar errado."

Logo apareceu Regina de Sá, de 52 anos, querendo detalhes sobre o curso. Seu objetivo era escrever de próprio punho os convites de casamento da filha. Para quem quer apenas melhorar a letra, dois meses bastam. Mas para escrever convites são necessários quatro meses e para diplomas, dez. A mensalidade é de R$ 220,00. "Talvez saísse mais em conta contratar os serviços de um profissional." Regina pensou alto e logo arrematou antes de ir embora. "Mas não teria o mesmo valor afetivo."

Há basicamente dois tipos de aluno. Aqueles que querem melhorar a letra – principalmente jovens às voltas com o vestibular e candidatos a concursos públicos – e aqueles que visam ganhar dinheiro, seja confeccionando convites e diplomas, gravando nomes em ouro, escrevendo nomes em bolos ou bordando-os em bonés. Antônio-pai se diz surpreso ao descobrir com seus alunos nichos tão criativos para o uso da caligrafia. A escola atende uma média de mil alunos por ano, entre presenciais e a distância – nesse caso, as lições e correções são feitas via correio.

Segundo Antônio-pai, a escola nasceu de uma história de amor. Tudo começou com dona Ida Nóbile de Franco, que vivia em Veneza e recebeu uma educação "castelar". A moça, que era fluente em latim, grego e francês, caiu de amores por um plebeu. "Foi aquele drama." Ida enfrentou a oposição familiar, casou-se com o plebeu e embarcou para o Brasil. "Nessa época, por volta de 1880, o Brasil era uma terra com tudo por fazer, pouca cultura, parca educação. Quando dom Pedro II veio ao Brasil, foi minha bisavó a encarregada de fazer o discurso, em francês, de recepção. Ela era uma pessoa muito culta em meio a essa massa ignara."

Dona Ida teve três filhos e a cada um ensinou uma arte. A Antônio de Franco, avô de Antônio, coube a arte da caligrafia. Em 1915 ele abriu a Escola de Calligraphia De Franco, como se grafava na época, utilizando o método criado por ele, o mesmo em vigor até hoje – incluindo as frases edificantes que os alunos têm que copiar exaustivamente. "Querer sem que custe é próprio dos fracos." O aprendiz de caligrafia ganha de bônus ensinamentos para a vida.


A falsificação
No tempo de dona Ida, escrever cartas era algo corriqueiro. Hoje elas são quase relíquias, num mundo onde as pessoas trocam mensagens eletrônicas e conversam em redes sociais como o Facebook. "Uma carta, ainda mais uma carta de amor, não se compara com o texto impresso", suspira Antônio. "A imperfeição impregna o seu calor, sua emoção, é isso que faz o trabalho diferenciado."

Antônio lembra-se de um caso curioso. "Um dia, um rapaz, humilde, vestindo uma camiseta do Santos, lembro bem, falou: Professor, minha letra é horrível e preciso saber se realmente vou melhorar com suas aulas.
Eu sou camelô e meu dinheiro é suado." Antônio deu sua palavra e quis saber o que motivara o rapaz. "Estou com um problema", teria dito. "Estou com muita saudades da Maria, minha namorada, que ficou lá na Bahia." Ele queria enviar uma carta para a amada, mas tinha vergonha de suas garatujas.

O português do rapaz continuou péssimo, mas a apresentação da letra, um primor. O moço sumiu e reapareceu depois de meses para contar o desfecho da história. Maria não acreditou que o namorado tivesse escrito uma carta tão primorosa de próprio punho. Ela dizia que ele tinha ditado e exposto as intimidades do casal para um terceiro e agora vinha com aquela ladainha de aula de caligrafia. Só havia uma maneira de ele provar que dizia a verdade: escrever na frente dela. O rapaz aceitou o desafio e desembestou até a Bahia para a tal prova dos noves.

O curso dos De Franco é essencialmente prático. Por meio de exercícios e correções, o aluno avança. "Não vou pegar sua letra, que você escreve há anos, cheia de vícios e modificar", explica Antônio-filho. "Ensinamos uma letra nova, a comercial inglês, que é um padrão de beleza mundial. E desde o início o aluno aprende o jeito correto de escrever."

E onde fica a individualidade da letra manual? Não era justamente a imperfeição dos traços que impregnava o texto de emoção, diferenciando-o do impresso, sempre frio e igual?

Antônio vem em socorro do filho. E com uma resposta na ponta da língua diz na sua voz pausada: "Se você colocar dez pianistas tocando a mesma partitura, que seria no caso o padrão, cada um vai dar uma interpretação própria. A ideia é que o aluno possa colocar dentro daquele estilo de letra sua individualidade. E nunca, mesmo dentro do mesmo padrão, uma letra é igual a outra. Isso já seria falsificação. Por exemplo, se você sobrepuser duas assinaturas e elas baterem exatamente iguais, é característica de falsificação. Mas essa já é uma outra área, a grafoscopia".


Linhagem e arte
A palavra caligrafia vem do grego "kallos" (beleza) e "graphos" (escrita). Dizer caligrafia feia ou bonita é um erro: "Há letra feia ou bonita, mas caligrafia é sempre letra harmoniosa", explica Antônio.

Na Grécia e na Roma antigas os calígrafos gozavam de elevada consideração social. Em países orientais, como Japão e a China, essa arte é praticada e venerada até hoje. Na China, foi inaugurado em 2009 um museu para celebrar a caligrafia e os ideogramas do país, o primeiro desse tipo no mundo.

Até 1950 o ensino de caligrafia fazia parte do currículo escolar brasileiro. "Sabe qual foi o resultado do fim da obrigatoriedade?", pergunta Antônio e logo emenda a resposta: "Os professores não estão aptos a escrever e muito menos a ensinar". Ele desabafa: "Falta orientação caligráfica".

Seu filho complementa: "A invenção da esferográfica, muito antes do computador, prejudicou a letra das pessoas. A caneta esferográfica não te obriga a empregar a mesma atenção que a caneta-tinteiro exigia".

Antônio-pai lembra-se de quando inventaram a tinta azul-real lavável, o que, para ele, na época um menino de dez anos, parecia a descoberta mais importante de todos os tempos. "Até então, era azul-real. Caía na roupa, tinha que jogar fora."

Seu filho, o único descendente da quarta geração, diz depois de toda essa conversa: "Todo o peso está nas minhas costas. Se eu não tiver filhos, morrem comigo os De Franco". O jovem está noivo e planeja contribuir para a continuidade da linhagem e da arte da bela escrita. E se a prole escolher outro rumo em vez da caligrafia? "Não poderei obrigá-los. Mas costumo brincar que tomei muita sopa de letrinhas e peguei gosto. Acho que com meus filhos será o mesmo."

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