AGENDA CULTURAL

26.10.11

Cadela vadia


Hélio Consolaro*

Seja mais humano, seja menos canino
Dê guarida pro cachorro, mas também dê pro menino 
Senão um dia desses você vai amanhecer latindo 
(Rock da cachorra, Leo Jaime, cantado por Eduardo Dusek)

Araçatuba está conhecida nacionalmente. Dessa vez, malconhecida, porque arrastaram uma cachorra numa moto pelas ruas cidade. Foi um escândalo: ficamos nus, sem uma folha para cobrir nossas vergonhas.

Arrastar uma cadelinha vira-lata pelas ruas da cidade, pelo simples fato de existir, foi uma crueldade. Não tinha raça e queria frequentar parque residencial de luxo, onde só havia cachorro com pedigree. Pau na pobrezinha. Foi barrada no baile. A estratificação revelada no relacionamento com os animais.

Se tivesse nascido bezerra, ia virar bife. Um final também trágico. Se fosse frango, estaria rolando numa assadeira. Os animais não têm muita sorte com os seres humanos. Nos animais domésticos, descarregamos nossos maus sentimentos, por isso os chamamos de estimação. Esfolamos todos. Matamos barata, detestamos andorinhas que defecam sobre nós. A Pandora virou uma espécie de catarse de nossa hipocrisia.

Ela teve melhor sorte, o seu sofrimento foi visto por uma pessoa sensível, por isso em qualquer blog ou rede social, Pandora está lá, virou celebridade, até papel de parede de computador. Júlia era o seu nome de guerra, mas fora batizada de Pandora por sua primeira dona.

Essa fulana afirma que a cachorra fugiu de casa depois de ouvir rojões; parentes e conhecidos juram que ela foi desdenhada. Agora, como mãe que abandona o filho, deseja-a de volta. A verdade é que, depois de ficar famosa, todos querem a Pandora: a ex-dona, e até o cruel porteiro do prédio que não aceitava a presença dela e a arrastou amarrada na motocicleta. Talvez tenha apenas cumprido ordens:

- Suma com essa cadela!

Depois de ser craque, todos querem tirar uma casquinha do sucesso do menino, dizendo que era isso ou aquilo dele. Antes, era um zé mané.

Na minha cabeça, quem trata mal os animais, faz o mesmo com os humanos, mas o outro lado também é verdadeiro: valorizar demais os animais, com aquele pegadio, é desvio de personalidade. Apesar de gostar de Pandora, não participo da ideia de que o cachorro é o melhor amigo do homem. Estou com o sambista: “O cachorro só é o melhor amigo do homem porque não conhece o dinheiro”. á H
 Há muita gente que ama os animais em detrimento do ser humano.    

A Eva é a Pandora pagã. O seu nome possui vários significados: a que possui todos os dons, a que é o dom de todos os deuses. Na sua caixa, Pandora abrigava a esperança. A cadelinha se parece muito com a deusa homônima. Ela trouxe a esperança de redescobrirmos a solidariedade.

A Pandora canina despertou em nós uma reflexão: a nossa maldade, o inimigo que mora no interior de cada um. Não é possível apenas condenar a ex-dona da cachorra, nem o porteiro do condomínio. Para ficar no simplismo do dual, concluímos que eu, você e todos nós temos Deus e o diabo como hóspedes.

*Hélio Consolaro é professor, jornalista, escritor. Atualmente é secretário da Cultura de Araçatuba-SP  

Um comentário:

Anônimo disse...

Não acho que devemos trocar um animal por uma criança pobre,mas acho que devemos respeitar os dois tanto o cachorro quanto uma criança.Porque o animal não tem como se defender,não consegue falar a mesma lingua que os humanos.A escolha deve ser de cada um,sempre respeitando todos.