Seja nas artes, seja no trato com as pessoas, a figura de Pedro Malasartes continua viva, usando a esperteza como meio de vida
Por Sérgio Trajano, ilustração de Marco Carillo
Astuto,
cínico, inventivo. Essas são as características mais marcantes de
Pedro Malasartes, personagem tradicional da cultura brasileira, que,
mais uma vez, voltou ao público no mês passado com a apresentação, em
algumas sessões, da ópera homônima de Camargo Guarnieri com libreto de
Mário de Andrade. A obra, que estreou há exatos 60 anos, fez parte das
comemorações dos 90 anos da Semana de Arte Moderna. Figura genial, ele é
capaz de criar estratagemas muito variados para enganar, burlar e
lograr ricos, vaidosos, tolos e avarentos. Ele já vendeu uma panela que
cozinhava sozinha, um ganso que previa o futuro e até uma árvore que
brotava dinheiro. O registro oficial aponta 318 contos em que o
malandro sempre sai vitorioso, mas há quem afirme que ele é inesgotável
em seus expedientes de esperteza e inventividade.
O
antropólogo Roberto DaMatta atribui ao trapaceiro uma das vertentes do
caráter do brasileiro. Segundo ele, Malasartes é uma figura construída
pelo povo em sua originalidade, em sua precisão e anonimato, em sua
ânsia de justiça e inconsequência galhofeira, em sua esperança de um
mundo diferente. “Resisto em associar o ‘seu jeito de ser ’ ao que hoje
conhecemos como desvio de caráter, muito associado ao brasileiro de
forma generalizada. Malasartes pode ser um estado de espírito, mais
inserido num contexto artístico, folclórico, que traduz, sim, a nossa
cultura pelo traço picaresco e cômico”, afirma Juliana Loyola,
professora de literatura da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP).
Para
Rosangela Patriota, coordenadora do Núcleo de Estudos em História
Social da Arte e da Cultura da Universidade Federal de Uberlândia
(UFU), o comportamento astuto e cínico das elites econômicas, por
exemplo, cujo lema é “rouba, mas faz”, não pode ser confundido com o
modo de vida de Malasartes. “Não podemos confundir a esperteza do rico,
que, roubando dos pobres, quer ficar ainda mais rico, com a esperteza
do pobre, que, enganando os ricos, quer conseguir algo para matar a
fome”, diz a pesquisadora.
Pedro
Malasartes denuncia que é possível sobreviver com esperteza e alegria
em um meio em que a exploração é regra. “É por isso que ele encanta
tanto e, nesse sentido, podemos entender a personagem como uma espécie
de herói às avessas, já que, para o povo, o melhor modelo é o inverso
àquele imposto pelo dominador”, explica Juliana.
Mas
esse malandro não é uma criação genuinamente brasileira, apesar de
estar espalhado por todo o Brasil. “Ele reflete nossa profunda
humanidade, cheia de sombra e luz, nesse caminho incerto chamado vida”,
diz Vera Ravagnani, contadora de histórias do Centro de Cultura e
Aprendizado de Botucatu, interior de São Paulo.
Oriundo
da tradição oral, Malasartes saiu dos contos populares e virou ópera
duas vezes. A primeira, escrita em 1932 por Camargo Guarnieri e Mário
de Andrade, e a segunda, composta por Lorenzo Fernández e Graça Aranha,
em 1933. Ele também foi para o cinema, em As aventuras de Pedro Malasartes,
em 1960, com Mazzaropi no papel principal, e, em 1988, quando o
humorista Renato Aragão criou o personagem Didi Malasartes. Na
televisão, sua essência está presente atualmente também. Segundo Vera, a
maneira malasartiana pode ser vista na figura de Agostinho Carrara,
personagem do seriado global A grande família. “Malasartes é imortal e empresta suas tintas a todas as expressões artísticas.”©
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