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Antônio Cícero |
Entrevista a Marcos Augusto Gonçalves sobre o livro "Poesia e filosofia"
Grifei as partes que achei importante. Isso facilita a leitura rápida.
Grifei as partes que achei importante. Isso facilita a leitura rápida.
A seguinte entrevista, dada a Marcos Augusto Gonçalves, foi publicada no caderno "Ilustríssima" da Folha de São Paulo, edição de 20/5/2012:
Para Antônio Cícero, poesia e filosofia são nuvens diferentes
RESUMO O poeta e filósofo carioca Antônio Cícero comenta seu ensaio
recém-lançado "Poesia e Filosofia", que reflete sobre os limites entre a
atividade filosófica, feita de ideias e de caráter abstrato, e a
prática poética, constituída de palavras e eminentemente concreta. Em
suas palavras, trata-se de "nuvens diferentes".
EM SUAS PALESTRAS e apresentações públicas, Antônio Cícero já se
habituou a responder perguntas sobre letras de canções, poesia e
filosofia, atividades que coexistem em seu universo intelectual e
criativo. Se as semelhanças entre poema e letra de música são evidentes,
no caso da filosofia e da poesia a distância que as separa é bem maior
do que se poderia, irrefletidamente, supor.
"Penso que são atividades humanas inteiramente diferentes uma da outra", afirma Cícero, 66, em seu novo livro, "Poesia e Filosofia"
[Civilização Brasileira, 144 págs., R$ 34,90] , publicado na coleção
Contemporânea, dirigida pelo pelo professor de literatura Evando
Nascimento.
O volume reúne argumentos para demonstrar, com base na reflexão e na
experiência do autor, que poeta e filósofo podem até viver com a cabeça
nas nuvens, como imagina o senso comum -mas nuvens diferentes: "A
filosofia deve ser um empreendimento extremo da razão, a poesia, não".
Enquanto o discurso da filosofia encerra uma proposição sobre as coisas,
o valor da poesia, segundo Cícero, "não é dado pelo que fale sobre
coisa alguma".
Sua finalidade "é o poema, a obra poética, feita para ser fruída
esteticamente". Ou, como respondeu o poeta francês Stéphane Mallarmé
(1842-98) ao pintor Edgar Degas (1834-1917), que pretendia fazer poesia
por ter muitas ideias: poemas são escritos com palavras, não com
ideias.
Cícero estudou filosofia no Rio de Janeiro, na década de 1960, concluiu o
curso na Universidade de Londres e fez pós-graduação na Universidade
Georgetown, nos EUA.
Em 1995, publicou o ensaio filosófico "O Mundo desde o Fim" (Francisco
Alves); três anos depois, veio o volume de poesia "Guardar" (1996),
estreia em livro do poeta já conhecido pelas letras cantadas pela irmã
Marina Lima.
Poesia e filosofia continuaram sendo trabalhadas em canteiros de obras
paralelos: em 2005, veio a antologia de ensaios "Finalidades sem Fim"
(Companhia das Letras). Uma amostra de sua produção poética está na
antologia que a EdUerj lançou em 2010, com apresentação de Alberto
Pucheu.
Na entrevista a seguir, resultado de conversas telefônicas e troca de e-mails, ele fala sobre o livro.
Talvez não seja a rigor universalizável, mas parece ser em certa medida
generalizável, pois o fato é que, pelo menos desde Homero, muito mais
poetas do que filósofos dão importância, na produção de poemas, ao que
chamam de "inspiração", isto é, a algo que escapa de seu controle e de
sua decisão racional.
Em sua opinião um poema, a rigor, não serve
para nada: ou sua leitura recompensa a si própria ou não tem nenhum
valor. Você diria que essa afirmação se aplicaria às artes de uma
maneira geral?
Sim. [Paul] Valéry [1871-1945] dizia que um poema devia ser uma festa do
intelecto. Penso que idealmente a apreciação de um poema enquanto poema
é uma festa não apenas do intelecto, mas da interação de todas as
nossas faculdades -razão, sensibilidade, sensualidade, emoção, senso de
humor, intuição- entre si e com nossa experiência, cultura, conhecimento
etc. Idealmente, o mesmo vale para a apreciação de todas as artes. Essa
festa já vale por si.
Você reitera a fórmula de Mallarmé, segundo a
qual poesia se faz com palavras, e não com ideias. Os filósofos
clássicos que expunham suas ideias sob a forma poética não faziam
poesia, mas filosofia em verso? Você não poderia ser acusado de
formalista?
Seria uma acusação sem fundamento. Veja bem: o pintor Degas estava
explicando que pensava poder escrever um poema, já que tinha muitas
ideias. Mallarmé então respondeu que um poema não se escreve com ideias,
mas com palavras. Invertamos a situação. Suponhamos que Mallarmé
tivesse dito a Degas que pensava poder fazer uma pintura, já que tinha
muitas ideias. Que lhe responderia Degas, com toda a probabilidade? Que
uma pintura não se faz com ideias, mas com tinta e movimentos da mão e
do pincel. Ou seja, quando Mallarmé diz a Degas que a poesia não se faz
com ideias, mas com palavras, ele está dizendo que a poesia, não menos
que a pintura, é arte, e não filosofia. Um poema é uma obra, um objeto,
não menos que uma pintura. Esta é feita com tinta, mão, pincel; aquele,
com palavras. É por essa razão que se pode estudar a filosofia de
filósofos que não possuem obra, como Sócrates, mas não se pode falar da
poesia de quem jamais haja feito um poema. No entanto, isso não quer
dizer que um poema -ou uma pintura- não contenha ideias. Um poema é
feito de palavras e ideias, formas e conteúdos. O que ocorre é que, num
poema, as ideias são inseparáveis das palavras, e os conteúdos, das
formas. Um poema não pode ser parafraseado, isto é, dito em outras
palavras. Quanto aos filósofos pré-socráticos, que escreviam em versos, é
preciso, de fato, não esquecer que uma sequência de versos não chega a
ser necessariamente um poema, e que um poema não é necessariamente feito
de uma sequência de versos. Na Grécia arcaica, escreviam-se não só
obras de filosofia, mas também de medicina em versos. Essas obras não
eram poemas, como, aliás, já observava Aristóteles, exatamente porque,
ao contrário do que ocorre na poesia, nelas o conteúdo pode ser separado
da forma, assim como as ideias, das palavras que as exprimem.
É possível que se faça um poema filosófico inteiramente satisfatório como literatura e filosofia?
Talvez o que tenha chegado mais perto disso seja o longo poema "Da
Natureza das Coisas", de Lucrécio [c. 96 a.C.-c. 55 a.C.]. No entanto, o
próprio Lucrécio considerava que seu maior mérito era ter exposto a
filosofia de Epicuro em "luminosos versos, a tudo tocando com a graça
das Musas". Além disso, a meu juízo, os trechos mais poéticos do poema
não são os mais interessantes filosoficamente e vice-versa. A grande
dificuldade é que a filosofia, quando maximamente ambiciosa, consiste
num empreendimento racional, crítico, abstrato, enquanto o poema é
sempre concreto, no sentido de consistir numa síntese indissociável de
múltiplas determinações semânticas, sintáticas, morfológicas,
fonológicas, rítmicas etc. Assim, enquanto a ambiguidade, a anfibologia,
a polissemia, a equivocação, a imprecisão, em suma, a "sujeira"
linguística são características a serem evitadas (ou são tomadas como
"males necessários") pela filosofia maximamente ambiciosa, elas são o
próprio material com o qual a poesia trabalha.
O que é mais difícil, traduzir poemas ou conceitos filosóficos?
Traduzir poemas. Como, na poesia, o significado não se separa do
significante, é a tradução de poemas que beira a impossibilidade. É por
isso que o poeta Haroldo de Campos [1929-2003] empregava a palavra
"transcriação" para a tentativa de tradução de poemas. Já os conceitos
filosóficos são -ou devem ser- perfeitamente traduzíveis. A pretensão de
que não o sejam não passa, a meu ver, de mistificação indigna.
Filósofo e poeta não se aproximam ao serem personagens deslocados da lógica do desempenho que marca a vida contemporânea? Por
esse ângulo sim, eles se aproximam.
Não é à toa que o senso comum acha
que tanto um quanto o outro vivem com a cabeça nas nuvens: para ele, nem
um nem o outro têm o pé na Terra. No entanto, como mostro no livro, as
nuvens do poeta não são normalmente as do filósofo. Enquanto este se
interessa, por exemplo, pelo "ser enquanto ser", pela relação entre a
matéria e a ideia, pela natureza da verdade etc., o poeta fala do
amanhecer, do amor que sente por alguém, da morte que se aproxima, de
certo tom de azul, dos sapatos usados, da rua que vê pela janela do
ônibus...
Se, a seu ver, poesia e filosofia são inteiramente
distintas, o mesmo não se pode dizer da atividade do letrista e do
poeta. Quais são as semelhanças e diferenças entre letra de canção e
poema?
A meu ver, a letra de canção é uma forma de poesia. Há uma
diferença evidente, entretanto, entre um poema destinado a ser cantado e
escutado (uma letra de canção) e um poema destinado a ser lido. É que
este é autotélico: ele já constitui a obra de arte, a ser fruída por um
leitor; já aquele é heterotélico: ele faz parte da canção, e é esta que é
a obra de arte, a ser fruída por um ouvinte. Assim, para mim, uma coisa
é fazer um poema para ser lido; outra coisa é fazer uma letra de
canção. É que, quando faço um poema, penso apenas nele mesmo; mas quando
faço uma letra de canção -e normalmente faço letras para melodias que
algum compositor ou compositora me oferece-, faço-a para também
corresponder às notas e ao espírito da melodia. Isso não quer dizer,
porém, que um poema feito para ser lido seja necessariamente melhor do
que uma letra de canção. A prova disso é que os poemas líricos da Grécia
antiga, como os de Safo, Alceu e Anacreonte, que fazem parte importante
do cânone ocidental de poesia, eram o que hoje chamamos de "letra de
canção". Afinal, o próprio epíteto "lírico" vem de "lira". Outra prova
disso é que um cancionista como Caetano Veloso, por exemplo, é com
certeza um dos nossos maiores poetas.
2 comentários:
Belo post..amei!
É isso. Parabéns pelo post. Eu desisti de tentar explicar que a letra da canção tem que ser tão bem trabalhada quanto um poema, afinal o que se ouve é hilário.
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