O Cronista na Praia
(ilustração: Pelicano)
(ilustração: Pelicano)
Jamais
saberei se estás em minha idade: um inapelável sessentão. Ai, tantas
pedradas, quantas notas em dó, muito vinho avinagrado na garganta!
Fumando umas coisas, víamo-nos uns nos outros e nos relacionávamos com a
natureza, entre Pink Floyd, Charlie Parker e Joan Baez. Nem posso
adivinhar, dileto leitor, em que ocasiões te bate a sensação de tempo
perdido. Mas, se nunca o tens, não te felicito. O tempo nos pesa e
haverá entre nós o liame irreversível de nos havermos estado no eito da
mesma ponte: a loucura dos anos que passaram.
Cena de Koyaanisqatsi (1982), de Godfrey Reggio
Apresento-me.
Sou da geração dos filmes de Godard. E os tínhamos sem renitência, pois
não era de bom tom (e nem o queríamos) abandonar as sessões de
cinema pela metade. Nem namorávamos a contento, alucinados pelos
intermináveis planos-sequências, montagens descontínuas, gestos
improvisos e diálogos etéreos, decerto em alegoria à fome no mundo, à
injustiça e censura às liberdades individuais. Perturbadores eram os
encontros com os amigos, taciturnos cinéfilos: “E aí, gostaste?” E
respondíamos reverenciais e solenes: “Jean-Luc é o máximo!”.
Koyaanisqatsi (1982)
Vivi
o drama de acostumar-me a mais essa dissimulação. Só depois alguém
opinou que os franceses faziam filmes baratos, chatos e difíceis de
entender, ou seja, de arte. E os louvávamos: era nossa reação ao
imperialismo ianque e suas guerras. Os tais realizavam fitas caras e
fáceis, ao gosto do povaréu. Alienados! – gritávamos com náusea.
Apreciávamos o experimental, o aleatório, a película em branco e preto
com o beneplácito da Nouvelle Vague e os Cahiers du Cinéma.
Koyaanisqatsi (1982)
Ufa,
por quantas noites queimei tutano esperando Godot em ciclos de
conferências sobre semiótica e estruturalismo, o desconstrucionismo e
maquinações tais que reduziriam a zero os enigmas do mundo! Não me
recordo [esqueci-me de dizer, estou numa praia] se foi Fellini quem
escarneceu assinalando que, para se obter uma cena “de arte” bastava
filmar uns minutos com a câmera fora de foco. Resultariam mechas de
intenções, brumas de sentidos que instauravam uma aura vanguardista a
questionar o establishment, enfim, obra aberta a vagas interpretações.
A trilogia
Viste Koyaanisqatsi?
Era assim, filme-cabeça duma trilogia acachapante. Invertia o papel da
música no cinema. Sorvíamos os acordes minimalistas de Philip Glass.
Deslumbrei-me ao descobrir que o músico era taxista de Manhattan. Em Koyaanisqatsi (Life out of Balance),
a mostrar o desequilíbrio da existência, nuvens em movimento anunciavam
catástrofes, flores se abriam num átimo, alheias à ordem do mundo e à
multidão que ia e vinha atormentada, como formigas em fim de outono.
Koyaanisqatsi (1982)
Tudo
à contramão dos conceitos retilíneos e à aritmética inteligível das
frases, na cadência do tempo que me pôs vincos no rosto e esta fatiga
sexagenária. No solilóquio de agora, aqui, à beira do mar, o violão, o
cigarro de maço e esta lua de ilusões. Ondeado pela confissão duma gesta
de inúteis façanhas, mescla de heroicidade e agonia, em tedioso contato
contigo, oh leitor.
O cronista naqueles tempos,o.
É tudo verdade,
tudinho.
tudinho.
Um comentário:
Hélio
Muito bom o texto!
A propósito, tenho uma cópia digitalizada de Koyaanisqatsi...VEZ POR OUTRA AINDA ASSISTO.
É daquelas obras visionárias que farão sentido até que a civilização acabe...Uma crítica poderosa à insensatez da "pretensa" razão humana. Como diria o poeta: "RAZÂO SEM RAZÔES."
Marco Ianner
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