AGENDA CULTURAL

4.6.12

VISTE KOYAANISQATSI?





O Cronista na Praia
 (ilustração: Pelicano)

Jamais saberei se estás em minha idade: um inapelável sessentão. Ai, tantas pedradas, quantas notas em dó, muito vinho avinagrado na garganta! Fumando umas coisas, víamo-nos uns nos outros e nos relacionávamos com a natureza, entre Pink Floyd, Charlie Parker e Joan Baez. Nem posso adivinhar, dileto leitor, em que ocasiões te bate a sensação de tempo perdido. Mas, se nunca o tens, não te felicito. O tempo nos pesa e haverá entre nós o liame irreversível de nos havermos estado no eito da mesma ponte: a loucura dos anos que passaram.


Cena de Koyaanisqatsi (1982), de Godfrey Reggio
Apresento-me.  Sou da geração dos filmes de Godard. E os tínhamos sem renitência, pois não era de bom tom  (e nem o queríamos) abandonar as sessões de cinema pela metade. Nem namorávamos a contento, alucinados pelos intermináveis planos-sequências,  montagens descontínuas, gestos improvisos e diálogos etéreos, decerto em alegoria à fome no mundo, à injustiça e censura às liberdades individuais. Perturbadores eram os encontros com os amigos, taciturnos cinéfilos: “E aí, gostaste?” E respondíamos reverenciais e solenes: “Jean-Luc é o máximo!”.

Koyaanisqatsi (1982)

Vivi o drama de acostumar-me a mais essa dissimulação. Só depois alguém opinou que os franceses faziam filmes baratos, chatos e difíceis de entender, ou seja, de arte. E os louvávamos: era nossa reação ao imperialismo ianque e suas guerras. Os tais realizavam fitas caras e fáceis, ao gosto do povaréu. Alienados! – gritávamos com náusea. Apreciávamos o experimental, o aleatório, a película em branco e preto com o beneplácito da Nouvelle Vague e os Cahiers du Cinéma.


Koyaanisqatsi (1982)
Ufa, por quantas noites queimei tutano esperando Godot em ciclos de conferências sobre semiótica e estruturalismo, o desconstrucionismo e maquinações tais que reduziriam a zero os enigmas do mundo!  Não me recordo [esqueci-me de dizer, estou numa praia] se foi Fellini quem escarneceu assinalando que, para se obter uma cena “de arte” bastava filmar uns minutos com a câmera fora de foco.  Resultariam mechas de intenções, brumas de sentidos que instauravam uma aura vanguardista a questionar o establishment, enfim, obra aberta a vagas interpretações.


A trilogia

Viste Koyaanisqatsi?  Era assim, filme-cabeça duma trilogia acachapante. Invertia o papel da música no cinema. Sorvíamos os acordes minimalistas de Philip Glass. Deslumbrei-me ao descobrir que o músico era taxista de Manhattan.  Em Koyaanisqatsi (Life out of Balance), a mostrar o desequilíbrio da existência, nuvens em movimento anunciavam catástrofes, flores se abriam num átimo, alheias à ordem do mundo e à multidão que ia e vinha atormentada, como formigas em fim de outono.

Koyaanisqatsi (1982)
Tudo à contramão dos conceitos retilíneos e à aritmética inteligível das frases, na cadência do tempo que me pôs vincos no rosto e esta fatiga sexagenária. No solilóquio de agora, aqui, à beira do mar, o violão, o cigarro de maço e esta lua de ilusões. Ondeado pela confissão duma gesta de inúteis façanhas, mescla de heroicidade e agonia, em tedioso contato contigo, oh leitor.

O cronista naqueles tempos,o.

É  tudo verdade,
tudinho.

Um comentário:

ESTACÃO BRASIL (UP GRADE) disse...

Hélio
Muito bom o texto!
A propósito, tenho uma cópia digitalizada de Koyaanisqatsi...VEZ POR OUTRA AINDA ASSISTO.
É daquelas obras visionárias que farão sentido até que a civilização acabe...Uma crítica poderosa à insensatez da "pretensa" razão humana. Como diria o poeta: "RAZÂO SEM RAZÔES."
Marco Ianner