Nathalia Goulart - Veja - 01/10/2012
A obra literária de Monteiro Lobato (1882-1948) tem alimentado
gerações de crianças e jovens, e não consta que seus leitores tenham
formado uma horda racista. Assim mesmo, mais um livro do escritor virou
alvo nesta semana da caçada ideológica que tenta enquadrar o criador do
Sítio do Pica Pau Amarelo no crime da racismo. A exemplo do que já
fizera com Caçadas de Pedrinho, o Instituto de Advocacia Racial e
Ambiental (Iara) quer banir das escolas públicas o livro Negrinha,
lançado em 1920. O que incomoda o instituto são passagens como "Negrinha
era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura,
de cabelos ruços e olhos assustados." A patrulha acusa a obra de trazer
"estereótipos e preconceito". "Trata-se de analfabetismo histórico", diz
João Luís Ceccantini, pesquisador de literatura infanto-juvenil e
coautor do livro Monteiro Lobato – Livro a Livro. "Querer censurar ou
modificar em algum grau uma obra cultural é um absurdo." Estudioso da
assimilação da literatura por crianças, Ceccantini acrescenta uma
informação ao debate sobre Lobato que demole de vez os argumentos dos
censores, que alegam que as obras de Lobato prejudicam a formação das
crianças. "Eu tenho estudado a forma pela qual as crianças absorvem o
que leem e minha conclusão é que elas sabem identificar os excessos dos
livros. Elas se apegam ao que é bom, à essência das histórias – e, no
caso de Lobato, essa essência não é racista." Confira a seguir a
entrevista com o pesquisador.
O que o senhor acha da tentativa de banir a obra de Monteiro Lobato das escolas públicas?
Trata-se
de analfabetismo histórico, que despreza o tempo em que determinadas
obras foram escritas. Querer censurar ou modificar em algum grau uma
obra cultural é um absurdo. Deve-se ainda observar outra questão: temos
de fato uma educação tão deficitária a ponto de os professores serem
incapazes de ajudar os alunos a interpretar passagens que eventualmente
façam uso de uma linguagem que já não é mais aceita? Por que não usar
esse pretexto para discutir em sala de aula o racismo? É uma grande
oportunidade.
O senhor tem um trabalho extenso na área de literatura infantil e
acompanha de perto o envolvimento das crianças com a leitura. De que
maneira elas são influenciadas pelo que leem?
Em primeiro lugar,
a ficção não tem esse poder todo que a gente imagina. A transferência
dos exemplos não é tão automática assim. Em resumo: o fato de eu ler uma
história de ficção não significa que vou sair por aí reproduzindo um
comportamento da ficção. Se fosse assim, bastava escrever livros com
histórias boas e puras para que construíssemos uma sociedade perfeita.
Mesmo com a criança, essa transferência não é automática. Eu tenho
estudado a forma pela qual as crianças absorvem o que leem e minha
conclusão é que elas sabem identificar os excessos dos livros, elas se
apegam ao que é bom, à essência da história – e, no caso de Lobato, essa
essência não é racista. As crianças entendem que a passagem "macaca de
carvão" não faz discriminação com Tia Nastácia, porque essa não é a
essência do livro. Ao contrário do que possa parecer, a criança é
seletiva. Mais seletiva do que muitos críticos.
Tia Nastácia é retratada ao longo da obra de Lobato de forma bastante
positiva. Não é exagero acusar o autor de racismo nesse caso?
Sem
dúvida. Tia Nastácia é tratada de forma muito amorosa em toda a obra de
Lobato. Existem milhares de citações afetivas em relação à personagem,
que tem uma função crucial na vida dos demais personagens: eles recorrem
a ela em busca de conselho, de carinho. Devemos observar ainda que
Lobato usa Tia Nastácia como pretexto para criticar a superstição, a
religiosidade e o excesso de crença no sobrenatural. Mas não há nenhum
traço de ódio racial nessas passagens.
Cartas de Lobato reveladas recentemente mostram a simpatia do autor
por teses da eugenia (corrente que defendeu o aperfeiçoamento da espécie
por meio da seleção genética e controle da reprodução). Isso deve de
alguma foram permear a análise que se faz da obra do autor?
Lobato
foi, acima de tudo, um humanista. Ele lutou pela igualdade, pela
democracia e não há um só episódio que o ligue a corrupção em alguma
esfera. E ele sofreu muito por isso. Decepcionado com os rumos que o
país tomava já naquela época, ele foi um crítico ferrenho do Brasil. Em
relação às cartas, não podemos esquecer que todos nós somos frutos da
época em que vivemos. Os pensamentos que ele exprimiu nos seus textos
eram muito comuns naquela época, como a eugenia. Outros escritores que
eram celebridades naquele tempo tinham ideias semelhantes, mas eles não
sobreviveram ao tempo. Portanto, pintar Monteiro Lobato como racista é
um erro.
O senhor já tinha assistido a discussões semelhantes sobre as obras de Lobato?
Nenhuma
controvérsia envolvendo Lobato é novidade para mim. Ele era uma figura
extremamente complexa, e isso faz dele um alvo fácil. Aconteceu em
diversos momentos da história. Não se pode perder de vista que estamos
falando de um dos maiores escritores brasileiros: se tivesse escrito em
inglês, seria um dos maiores de sua época. Sua literatura infantil é de
uma riqueza incomparável. Mas, como eu disse, ele é um fruto de seu
tempo, como todo nós, aliás. Se sua obra ajudar a discutir o racismo,
então vamos discutir – não censurar.
Há casos semelhantes de tentativas de censura na literatura infantil?
O
caso mais notável é o do autor americano Mark Twain (de cuja obra
tentou-se suprimir o termo "nigger", considerado racista em inglês). Mas
acredito que tudo isso tem um lado positivo. A literatura costuma
circular entre grupos muito pequenos: quando a democracia se fortalece e
o nível de letramento da população cresce, temas como esse vêm à tona. O
que não pode haver é uma caça às bruxas. Se formos censurar tudo,
comecemos por Homero, na Antiguidade: ninguém saíra ileso.
Qual o prejuízo de suprimir palavras ou reescrever trechos de uma obra literária?
Reescrever a história é uma das coisas mais nefastas que pode haver.
Uma das propostas do instituto que tenta proibir a distribuição de
Caçadas de Pedrinho é enviar o livro para as escolas com um anexo que
aponte as passagens consideradas racistas. O senhor concorda com esse
"guia de leitura"?
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Capa do livro |
Se for o preço a pagar para garantir que a
obra de Lobato continuará circulando, que coloquem a tal nota
explicativa. O problema, contudo, é que assim criaríamos um modelo
editorial que supõe que o leitor é bobo e incapaz de chegar a suas
próprias conclusões. Não sei em que medida isso é bom. Um dos grandes
fascínios da literatura é permitir múltiplas leituras. |
2 comentários:
Quem sabe o próximo passo não será a censura de "Teu cabelo não nega" e "Mulata assanhada", pelo notório e inconteste conteúdo racista ?
"como pode peixe vivo viver fora d´´agua fria", para o bom entendedor maia palavra basta.
marianice
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