AGENDA CULTURAL

11.12.12

A família acabou ou mudou-se o formato?

Revista E - Sesc-SP 

Na esteira da revolucionária década de 1960, os anos de 1970 foram pródigos em questionar as instituições sociais. Não houve uma que passasse incólume às críticas agudas, disparadas como balas de metralhadoras giratórias. Nenhuma saiu ilesa. Estado, Igreja, família, casamento foram o alvo preferido, mas sobravam tiros para todos os lados. A não ser que se recorresse tão simplesmente à alienação. Não necessariamente a política, mas, sim, ao gesto tão banal de fazer vista grossa ao que se passa bem ao nosso lado. A tudo que nos circunda. Incluindo a nós mesmos.   

A instituição “família” saiu cambaleante desse período, banhada em sangue. Passou por várias cirurgias, precisou de muitos cuidados para curar ou amenizar suas feridas. Uma longa temporada na UTI. Já na porta do hospital, trôpega, a dúvida; para onde ir?

A garantia estipulada pelo patriarcado encontrava-se em ruínas já há algum tempo. A rigidez da verticalidade das relações não era bem-vista. A pílula anticoncepcional transformava a sexualidade. Elementos imprescindíveis que demarcavam uma tradição foram interrogados.

Como não transgredir se era proibido proibir? De lá para cá, em 40 anos muita coisa mudou, e, em vários aspectos, avançamos. Não há, atualmente, dúvida alguma de que existe bem mais espaço para as diferenças, em relação a um passado recente, e de que isso é um bom sinal.

Podemos montar famílias díspares, casamentos distintos, levar a nossa vida de forma bem mais condizente com as nossas aspirações, nossos desejos, nossas preferências e limitações, sem necessariamente escandalizar a tradição. Avançamos pela diferença. É necessário entendermos o que significa essa diferença.

Antes de tentar esboçar um argumento que sustente isso – a inclusão da diferença –, proponho duas hipóteses interligadas quanto ao funcionamento das instituições. Uma delas, é que precisamos levar em conta que as instituições ditas oficiais, o Estado e a Igreja, concentradoras de maior poder e que têm uma influência macroscópica, perderam muito do prestígio que gozavam como reguladoras sociais.

Não só pelo gigantismo, que poderia ser uma boa desculpa, mas, sim, muito mais pelas dificuldades em relação às tentativas de modernização de suas entranhas, que têm levado mais tempo para dar mostras de sinais vitais. Aliás, ainda sofrem, com várias feridas abertas. A saúde dessas duas instituições, em comparação à instituição familiar, é muito frágil. 

Mesmo que, por vezes, tentem arejar alguns aspectos, preservam um caráter conservador dos mais arraigados. Com isso, sua inoperância teve como consequência uma perda de confiança no seu poder e na sua ação, dificultando ainda mais sua recuperação. Podemos contar pouco com elas.

Uma segunda hipótese a ser considerada. O descrédito e a desconfiança nas instituições maiores, no que chamaríamos de vida pública, deslocaram o olhar para a vida privada. A vida íntima das famílias começou a receber maior atenção. As famílias começaram a concentrar maiores expectativas de aceitação de mudanças, para, com maior rapidez, responder aos anseios individuais.

O teatro privado familiar tornou-se palco de manifestações que antes encontravam no espaço público seu lugar privilegiado. Muitas mudanças foram exemplares nesse sentido: o exercício no interior das famílias – o teste no mundo privado tomou um vulto maior como lugar para o exercício da diferença.

Talvez esse seja o elemento que mereça um desdobramento. Então, aonde chegamos no que diz respeito à família contemporânea? É corrente que família é uma instituição imprescindível, mesmo que não isenta de problemas. Podemos perguntar para qualquer um qual é o seu esteio, a resposta, sem dúvida, é a família. Ou o contrário, se algo não funciona na vida de alguém a causa atribuída é, quase sempre, a desestruturação familiar. Depositamos na família, no seu funcionamento, a transmissão que projetaria tanto o melhor quanto o pior da vida.

Então, de que tipo de laço estamos falando? Nas famílias contemporâneas não é esse o questionamento que mais salta aos olhos? Quais são os critérios que utilizamos para demarcar uma família? O laço amoroso de um casal seria o início, um mítico marco zero. A partir do momento em que se projeta algo em direção ao futuro, através dos filhos, é que se produz uma diferença fundamental.

O laço de sangue toma outra proporção. E talvez esse tenha sido a grande vítima, felizmente, das transformações familiares. É curioso. Sempre que se diz ou se ouve a expressão “sangue do meu sangue” a imagem que vem à cabeça é que há uma ligação entre a geração precedente e a posterior impossível de ser rompida.

A imagem é legítima, sem dúvida, mesmo que não totalmente verdadeira. O que talvez mereça ser considerado é que sua extensão é curta para recobrir os diferentes modos de relações que temos. Em outras palavras, o chamado vínculo biológico, a herança genética, não é suficiente para assegurar ou para abarcar as diferenças que nós, humanos, produzimos no plano simbólico. 

Se não podemos negar que ter um filho biológico traduz o desejo de muitos, o que se transmite por essa via é limitado. Ou seja, não é pelo sangue, mas pelo desejo que a transmissão de uma geração para outra se efetiva. E isso que é alusivo ao simbólico é a condição humana per se.

O que significa isso? Significa que podemos enfrentar situações novas, sem recuarmos por medo ou preconceito.
 

Significa que a abrangência das configurações familiares na contemporaneidade, além de mais ampla, e desafiadora, inclui a diferença que aludimos anteriormente. Haja vista os novos formatos de famílias: homens casados com homens; mulheres com mulheres; homens transformados em mulheres casados com mulheres transformadas em homens; e mesmo o tradicional homem casado com mulher.

Ou seja, as combinações são várias e todas são possíveis frente à mínima diferença, ou igualdade, existente entre os sexos. Com isso, ganhamos todos a possibilidade de nos vermos incluídos em instituições das quais, nós, humanos, não abrimos mão de participar.

Ou seja, a possibilidade de os casamentos se rearranjarem, sejam parcerias hetero ou homo, homens e mulheres separados que se casam novamente, trazendo para as novas parcerias filhos já crescidos ou tendo novos, já não é mais novidade. Mas a discussão que merece ser feita é de que o “laço de desejo” nas relações é o mais importante, pois é dele que as relações afetivas, amorosas, dependem. Não se trata de depreciar o laço de sangue, mas o fato discursivo é que faz alguém pertencer a uma família, quando dizemos: “Fulano é meu pai”, “Sicrano é meu filho”, delimitamos o campo onde estamos como humanos.  

As críticas, em forma de balas, não serviram para destruir, aniquilar, extinguir um dos pilares das instituições sociais? Pelo contrário, o que se conseguiu foi reforçar a concepção de família. Recuperamos a ideia de família, mas com um novo conceito.

Não a família verticalmente agonizante das décadas anteriores, mas a nova família, que permite novas configurações, inclusive em um trânsito pela horizontalidade. Aquilo que era considerado a representação das mais “caretas”, da reprodutora mor do moralismo e do status quo, quando menos se esperava saiu do seu estado moribundo e ressurge com toda força.

Mas, felizmente, ressurge modificada. O que não significa, necessariamente, que tudo está resolvido. Longe disso. Os problemas no seu interior não desapareceram, nem desaparecerão. Pelo contrário. Criamos outros, o que de modo algum é ruim, só exigirá que estejamos preparados para isso, sem os mesmos preconceitos vigentes.

O que podemos traduzir por recuperarmos a palavra família, mas com um novo conceito. Então, as alterações e mudanças no mais “vivo da vida”, no cotidiano, têm transformado em direito o que é um fato. Com isso, dando valor aos esforços para chegar aonde chegamos. Que a legitimidade do laço amoroso não se dá pelo tempo de permanência de uma relação, nem o familiar se constrói exclusivamente pela herança biológica. Conseguimos um estado de avanço, ainda incipiente, na civilização que inclui o desejo, que pelo menos é promissor.

“As críticas, em forma de balas, não serviram para destruir, aniquilar, extinguir um dos pilares das instituições sociais? Pelo contrário, o que se conseguiu foi reforçar a concepção de família. Recuperamos a ideia de família, mas com um novo conceito”

 Otávio Augusto Winck Nunes é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS) e mestre em Psicanálise e Psicopatologia pela Universidade de Paris VII.

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