AGENDA CULTURAL

11.12.12

As famílias vão bem? E a sua, como vai?

O debate sobre a transformação do modelo familiar vem ganhando cada vez mais repercussão tanto nos meios acadêmicos quanto na mídia. A nova configuração inclui separações, criação de novos núcleos envolvendo padrastos, madrastas, irmãos por parte de pai ou de mãe, pais homossexuais e até parceiros heterossexuais que não querem ter filhos. Apesar de toda essa diversidade, o que importa são os laços que definem a composição da palavra família, mesmo que alimentada de um novo conceito. Em artigos inéditos, o antropólogo Geraldo Romanelli e o psicanalista Otávio Augusto Winck Nunes analisam a questão. Revista E - Sescsp

 Se existe algo em comum às famílias é a diversidade de sua composição interna e sua constante transformação. Famílias devem ser entendidas no plural, pois assumem configurações variáveis em cada período histórico e mesmo no interior de sociedades específicas. Ao mesmo tempo, passam por processos de mudança, às vezes lentos, outras vezes mais acelerados, como acontece na sociedade brasileira contemporânea, e que resultam em inovações na composição doméstica.

Essas inovações estão associadas em boa parte ao impacto da esfera econômica e política. No plano econômico, a forma de inserção dos familiares no mercado de trabalho e o montante de rendimentos gera distintos modos de organização nas famílias. O poder público igualmente interfere nas relações familiares mediante leis que regulamentam casamento, divórcio, reprodução biológica, através de medidas para limitação da natalidade, aborto, transmissão de herança,  guarda dos filhos após separação dos pais e concessão de benefícios como o Bolsa Família.

Pressões e ingerências econômicas e políticas não atuam de modo mecânico e automático sobre as famílias. Estas não são inertes diante dessas coações, mas seus integrantes reagem criativamente a elas, reordenando as relações internas e as que mantêm com essas esferas.

Paralelamente a esses impactos, o avanço do conhecimento científico também afetou as famílias. O surgimento de técnicas contraceptivas assegurou o controle da natalidade e contribuiu para a redução da taxa de fecundidade, atualmente de 1,8 filho por mulher, conforme dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2010.

Em sentido inverso, novas tecnologias reprodutivas permitiram ultrapassar os limites biológicos da reprodução assegurando que casais com problemas de infertilidade possam ter filhos. Também o surgimento de exames de DNA para comprovar, sobretudo, a paternidade possibilitou ao pai comprovar cientificamente se o filho da mulher com quem vive é realmente seu descendente biológico.

Quando esse vínculo não é comprovado, a relação afetiva entre pai e filho construída na convivência mútua tende a ser desfeita. Nesses casos, essa descoberta tende a ocasionar graves problemas emocionais para o filho e para o pai, como estudos antropológicos recentes têm demonstrado.

Todos esses fatores têm contribuído para a renovação da vida familiar, acarretando aumento de separações e divórcios; crescimento de uniões consensuais, isto é, sem casamento legalizado; redução no número de filhos; aumento de gravidez fora do casamento, sobretudo entre adolescentes; formas de reprodução assistida; casamentos de homossexuais; e o surgimento de novas formas de organização doméstica.

De fato, o que está em rápido processo de mudança é a redução de famílias nucleares, compostas por marido, esposa e filhos e a diminuição de casamentos civis. A própria concepção de casamento, tradicionalmente considerado como união indissolúvel, foi alterada e hoje o vínculo conjugal tem duração limitada. Lei de 1971 instituiu o divórcio, que hoje é processo simplificado, e permite novo casamento. Entretanto, dados do IBGE indicam que o casamento legalizado decaiu de 93,5% em 1960 para 71,4% em 2000, e as uniões consensuais aumentaram de 6,5% para 28,6% no mesmo período.

Por sua vez, a família nuclear, composta por marido, esposa e filhos, considerada modelo ideal de organização doméstica, tem diminuído. Conforme indicadores do IBGE, em 1999 essas famílias representavam 55% e em 2009 eram 47%. Ainda segundo esse Instituto dentre os novos arranjos que se ampliaram encontram-se as famílias matrifocais, ou chefiadas por mulheres, constituídas pela mãe e pelos filhos que moram com ela e que de 9% em 1978 passaram para 29,2% em 2006.

Famílias patrifocais, compostas pelo pai e pelos filhos que residem com ele, começaram a ser tornar mais visíveis e correspondem a 1,7% na mesma data. A existência desse arranjo altera postura predominante até recentemente, segundo a qual a guarda dos filhos cabia à mãe, e suscita inúmeras indagações acerca do modo como o pai cuidará dos filhos sem a presença materna.

Em grande parte fruto de separações, as famílias recompostas, em que um dos parceiros, ou ambos, tiveram filho de união anterior, tendem a aumentar, como revelam vários estudos. Nessas famílias, os filhos geralmente residem com a mãe e com o parceiro desta. Esses arranjos criam uma constelação de pessoas que partilham convivência em comum, inicialmente o padrasto ou a madrasta, seguidos pelos filhos da nova união e de outros que um dos parceiros teve de relacionamentos anteriores, além de parentes do atual companheiro da mãe.

A ampliação dessas relações é fonte de confusão para classificar essas pessoas e para definir o modo de relacionamento com elas e pode desencadear tensões e conflitos. Apesar disso, algumas pesquisas recentes têm mostrado que a relação entre padrasto e enteados não é necessariamente conflituosa; muitas vezes é vivida por eles de modo afetivo e enteados frequentemente consideram e tratam o padrasto como se fosse seu pai. 

Por outro lado, o desejo de casais homossexuais de exercerem a homoparentalidade, isto é, de se tornarem pais e mães, pode ser viabilizado mediante novas tecnologias reprodutivas e é bom exemplo de que família só é realmente efetivada quando há filhos. Se essa postura não é extensiva a todos os homossexuais deve ser contraposta ao número crescente de casais heterossexuais que não desejam ter filhos, categoria em crescimento entre a população brasileira que, segundo o IBGE, passou de 13% em 1999 para 17% em 2009.

A homoparentalidade ainda causa perplexidade e desconfiança, pois rompe com o modelo de família heterossexual e acarreta inúmeras dúvidas quanto ao fato de duas pessoas do mesmo sexo poderem criar filhos de modo adequado. Todavia, algumas pesquisas produzidas nos Estados Unidos, na França e no Brasil questionam essa avaliação.

Não obstante todos os problemas que afetam esse tipo de união, alguns juízes têm adotado postura inovadora ao conceder estatuto legal às uniões homoafetivas e, em certos casos, à homoparentalidade. Como todas essas inovações estão se manifestando com grande velocidade cria-se a suposição de que elas podem ameaçar a continuidade da família e sua suposta decadência, o que comprometeria a reprodução da própria sociedade. Ao contrário, pesquisas tendem a mostrar que os brasileiros atribuem grande importância e apreço à família como documentado em pesquisa do Instituto DataFolha em 2007. 

Essa valorização das famílias ultrapassa a diversidade de arranjos domésticos e assenta-se no que eles têm em comum, como a reprodução biológica – que também pode ocorrer fora da unidade doméstica –, os cuidados dispensados aos filhos e a provisão de recursos financeiros necessários para assegurar moradia, alimentação, saúde e lazer de seus integrantes.

Outro aspecto relevante refere-se ao conteúdo afetivo das relações familiares que se manifesta nos vínculos criados entre seus integrantes, o que dá origem ao sentimento de pertencimento a um grupo de convivência fundado na solidariedade. Contudo, a vida familiar não é organizada apenas por relações harmoniosas, solidárias e protetoras.

Competição, conflito e, inclusive, violência de marido contra esposa, de pais contra filhos tendem a ocorrer de forma intensa no interior da cena doméstica, como está igualmente documentado por várias pesquisas. Famílias não podem ser avaliadas e entendidas a partir de moldes tradicionais.



E não se trata de questionar se as famílias vão bem ou mal, mas de compreender o modo como se organizam, já que não há um único modelo ideal e correto de ordenação das relações domésticas. Também não cabe perguntar se sua família vai bem ou mal, mas o importante é como cada um vivencia as transformações da própria família e como reelabora constantemente os vínculos domésticos.

Estes não são perenes e se alteram devido ao nascimento dos filhos, ao ingresso deles na escola e no mercado de trabalho e em função de separação, desemprego, doença, morte, de tal modo que as relações no interior de uma família nunca são as mesmas no decorrer da trajetória de cada um de seus integrantes.

“Famílias não podem ser avaliadas e entendidas a partir de moldes tradicionais. E não se trata de questionar se as famílias vão bem ou mal, mas de compreender o modo como se organizam, já que não há um único modelo ideal e correto de ordenação das relações domésticas”

Geraldo Romanelli é antropólogo e professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de ?Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo.

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