Luís Nassif
De certo modo, dona Canô se tornou uma mãe símbolo do
Brasil. Não para todos, menos ainda para os mais jovens, mas para os da
minha geração. E morreu no Natal, inspirando a celebração da mãe
brasileira, na figura de dona Canô.
Foi ela que trouxe as músicas brasileiras do fundo dos
séculos e as borrifou em seus filhos, desde o berço, gotas preciosas
fazendo florescer uma das mais belas famílias musicais do país, Caetano,
Bethania, a família estendida, Gil, Gal, Tom Zé e seus inúmeros
descendentes musicais.
Dona Canô pegou o bastão das músicas antigas, entregou
aos filhos, eles assimilaram, trabalharam os sons e acrescentaram ao
repertório imemorial as dezenas de joias musicais que nossa geração
recebeu e também entregamos aos nossos filhos, na companhia das cantigas
que recebemos de nossas mães.
Dona Canô representava tudo isso. Varou o século 20 e
entrou no século 21, nesses tempos da Internet e do desvario, para
explicar que por trás das mudanças de paradigmas, da globalização, pior,
dos provincianos da globalização, que julgam de bom tom espinafrar
qualquer senso de brasilidade, há o fio condutor. E um fio condutor tão
forte que a impeliu a puxar as orelhas do filho, setentão rebelde,
sempre que necessário.
Foi a partir das cantigas recebidas por dona Canô que
Caetano produziu um som brasileiro universal, levou a baianidade aos
quatro cantos, encantou intelectuais e músicos dos mais variados países.
Um ex-amigo me contava, anos atrás, a paixão que o grande Albert
Hirschmann tinha pelas músicas e pela voz de Caetano.
Por trás do artista, a mãe, paradigma das mesmas mães
que moldaram nossa geração, que nos fizeram acreditar no Brasil, que
plantaram em nossas emoções as cantigas de roda, as pequenas práticas do
interior.
Semana passada, ganhei de tia Zélia uma das fotografias
preciosas da família. Eu, com poucos meses, na qualidade de primeiro
filho da nova geração, no colo da nossa matriarca maior, vó Mariquinha,
minha bisavó. Minha lembrança mais antiga era ficar no seu quarto, na
pequena São Sebastião da Grama, ouvindo suas cantigas. E, nem sei bem
porque, com as pernas na parede, de ponta cabeça no colchão,
cantarolando “Adios muchacho”, provavelmente ensinado por tia Rosita ou
tia Marta.
Atrás da vó Mariquinha, vó Martha, que me embalava no
sono cantando velhas valsas do maestro Azevedo (“dorme, dorme, filhinho /
meu anjnho inocente…”). Ao lado da vó Martha, tia Mariana, que ensinou
para mamãe o clássico “Linda Flor” (“Cabocla linda flor do ipê / eu
quero casar com vancê”). Depois, tia Deca e a beleza clássica de dona
Tereza, linda, linda.
Ontem o Natal foi na casa da Fátima. Reunidos, todos os irmãos, boa parte dos sobrinhos.
A confraternização com os ausentes se deu através da
música. Cantamos "Marambaia", "Chuá Chuá", as canções de Bob Nelson, a
"Flauta de Bambu", de Jararaca e Ratinho, que dona Tereza adorava, e que
provavelmente dona Canô cantava para seus filhos. E "Papai Adão" e as
marchinhas que seu Oscar escondeu de nós, mas que recuperamos muito
tempo depois, através de seus amigos.
Incluímos na cantoria o "Ciúmes", a mais bela
composição de Caetano; o frevo de Gilberto Gil, que marcou meus 18 anos.
E cantamos Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Chico e Milton.
Não falamos dos velhos, nem relembramos as festas de
família dos tempos de Poços. No meu canto, estranhei um pouco o passar
dos anos. Agora, éramos nós a geração mais velha, mais velhos do que
nossos pais já eram na época. E os sobrinhos, ainda crianças para nós,
bem mais velhos do que os jovens que éramos nos festejos poços
caldenses.
Dona Canô morreu no Natal, a mais bela festa da família
brasileira, independentemente de credos e raças. E permitiu a todos nós
esse momento mágico de saber que ela, a mãe símbolo da nossa geração,
em breve estará com as demais mães brasileiras entoando as cantigas que
primeiro fizeram brotar nossas emoções e nossa crença no país.
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