Li o livro “O que é uma cidade criativa”, de Elsa Vivant,
editora Senac. Boa leitura para quem trabalha com cultura ou com qualquer ramo
da administração pública.
Nele a autora inseriu dois artigos, graficamente destacados.
Abaixo, reproduzimos o primeiro.
Capa do livro |
A boêmia em Paris,
representação mítica do artista
No século 20, emerge a figura do artista romântico
independente, inspirado e singular, que, para exercer seu talento e seu dom,
abstrai dificuldades materiais, correndo o risco de viver na miséria.
Ele não vive de sua arte, mas para a arte. Seu sucesso não
mais depende da boa vontade dos mecenas e dos contratantes, mas se avalia de
acordo com o mercado da arte, resposta econômica ao crescimento numérico da
população artista.
A transgressão dos códigos e das normas é critério de
valorização e o modo de apreciação de uma obra. O artista assume riscos ao propor novas formas estéticas,
novas definições da arte, que estão acima da transação (Moulin, 1992).
A incerteza do sucesso implica condições de vida miseráveis,
que, transformadas em virtudes, constituem aquilo que garante a liberdade
criadora do artista. Os artistas
aspirantes aceitam essa incerteza e assumem a escolha de uma vida
marginal e miserável para seguir sua vocação.
Eles vivem à margem de uma
sociedade que frequentam: os burgueses ricos são seus clientes, e os pobres,
seus companheiros de infortúnio. Sua instalação em certos bairros e próximos
uns aos outros contribui para sua legitimação, para a construção de redes
pessoais e profissionais e para a conversão da imagem da singularidade e da
excentricidade em atributos positivos da construção da identidade do artista.
A emergência dessa nova categoria se inscreve em um contexto
social e político particular: o nascimento da democracia sobre as ruínas do
regime aristocrático. Depois da Revolução Francesa, muitos jovens aristocratas
decadentes se engajaram em uma vida boêmia, em reação à perda de seu poder
político.
Instalar-se em uma vida de artista que não respeita
obrigações e conveniências sociais é uma forma de conservar um poder simbólico
perante a burguesia em ascensão. Não se deixando ditar por comportamento ou
modos de vida forjados pela concepção burguesa de sucesso e de família, eles
resistem a sua decadência enunciando novas concepções da elite (Heinich, 2005).
O ódio ao burguês encontra suas origens nessa redistribuição
pós-revolucionária das cartas do prestígio social e do poder econômico e político.
Reciprocamente, a fascinação burguesa pelo universo da arte é uma busca do
prestígio simbólico.
Assim, esses jovens aristocratas contribuíram para o
deslocamento dos valores aristocráticos em direção ao mundo artístico e para a
valorização do status do artista. O
privilégio de nascer herdeiro dá lugar ao dom inato; a importância do nome
herdado torna-se aquela do renome. O prestígio do artista corresponde à
aristocratização de seu status na
recusa ao emburguesamento.
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