Líder comunitária que acompanhou surgimento do projeto em Porto Alegre em 1988 vê com preocupação sua transformação em encontro reivindicatório: “Está reinando o farinha pouca, o meu pirão primeiro”
por Marco Weissheimer, do Sul 21 publicado 04/03/2014 - Revista Brasil Atual
VINÍCIUS RORATTO/SUL21
Iria Charão: 'Costumo dizer que é um processo, tem forma pronta e acabada. Ele vai se remodelando no caminho'
O Orçamento Participativo foi uma invenção que tornou Porto Alegre uma cidade conhecida internacionalmente. Criado a partir da eleição de Olívio Dutra para a prefeitura da capital gaúcha, em 1988, o OP enfrentou muitas dificuldades no início, mas logo se tornou uma experiência de participação popular que é referência até hoje. Uma das responsáveis pela criação dessa política foi Iria Charão. Militante do movimento comunitário, em 1988 trabalhava no Hospital da PUC quando foi convidada por Olívio Dutra para uma tarefa: cuidar da participação popular. Ela aceitou o desafio e passou a trabalhar na construção do OP.
Em entrevista ao Sul21, Iria Charão fala sobre esse processo de construção do Orçamento Participativo, dos problemas e da desconfiança inicial, da criação de uma política pública que se tornou, acima de tudo, um espaço construtor de cidadania, solidariedade e conhecimento. Segundo ela, uma experiência que começou praticamente do zero: “Tem muita gente que hoje escreve sobre aquela época e diz que nos baseamos nisto ou naquilo, na experiência de Pelotas com Bernardo de Souza, ou na experiência de uma cidade de Santa Catarina. Vou dizer com toda franqueza: eu não me baseei em absolutamente nada disso”.
Iria Charão segue participando das assembleias do OP em sua região e vê com preocupação a transformação do espaço em encontros meramente reivindicatórios. O OP, diz ela, foi uma grande escola popular: “O conhecimento foi fazendo com que as pessoas se abrissem mais, fossem mais solidárias e enxergassem que outras regiões da cidade precisavam muito mais do que a sua naquele momento. Esse é um legado importante que infelizmente está morrendo agora, pois está reinando o “farinha pouca, o meu pirão primeiro”.
Quando e como o Orçamento Participativo entrou na tua vida?
Em 1988, quando ganhamos a eleição para a prefeitura de Porto Alegre, tínhamos no programa de governo o compromisso de que o povo participaria das decisões do governo municipal, de que haveria participação para a elaboração do orçamento. Mas não era nada muito desenvolvido. Eram meia dúzia de frases que falavam da importância da participação do povo, mas nada mais que isso. Não tínhamos uma fórmula nem um método de como iríamos fazer. Naquela época, todos nós acreditávamos no socialismo. A gente tinha um grupo idealista e sonhador que achava que iria mudar o mundo a partir dali. Ganhamos a eleição e aí o desafio era fazer.
O que você fazia na época?
Eu trabalhava no Hospital da PUC. O Olívio me chamou para trabalhar no governo e eu disse para ele: o que é que eu posso fazer, não entendo nada de administração. Ninguém entendia, na verdade. Era a primeira experiência. Nós fomos cobaias daquela administração. Ele me disse que me queria cuidando da participação. Vamos lá, então, eu disse. Era assim mesmo, meio à moda diabo. Eu e o Gildo Lima fomos trabalhar na coordenação de relações com a comunidade e a Geci Prates ficou cuidando da parte sindical. Tem muita gente que hoje escreve sobre aquela época e diz que nos baseamos nisto ou naquilo, na experiência de Pelotas com Bernardo de Souza, ou na experiência de uma cidade de Santa Catarina. Vou dizer com toda franqueza: eu não me baseei em absolutamente nada disso. Eu apenas recebi uma tarefa do partido pra fazer.
Em 1989, o Clóvis Ilgenfritz era o Secretário do Planejamento e era o Planejamento que fazia o orçamento municipal. O Clóvis ficou encarregado disso e eu acompanhei as primeiras tratativas, desde o início. Como fazer, como começar? Nós reunimos as lideranças comunitárias para expor a elas qual era a nossa vontade. A gente já vinha fazendo isso no cotidiano. Havia uma prática na prefeitura até então, pela qual as lideranças marcavam audiência com o prefeito. Tinha associação de moradores à revelia. Chegava a ter duas em uma mesma rua. Nós tomamos a decisão de que, ao invés de atender os presidentes de associações de bairros, nós iríamos ao encontro das pessoas. O meu trabalho aí foi dizer isso para as pessoas. Em apenas um mês e meio de trabalho eu tinha recebido umas 250 solicitações de audiências com o prefeito.
Naquela época, as associações de moradores eram todas registradas na prefeitura. O prefeito é que assinava a prestação de contas das associações. Era um absurdo. Nós acabamos com isso e, no início, as pessoas não gostaram muito. Havia mais de 200 associações de moradores em Porto Alegre. Nós pedimos que eles reunissem as pessoas que o prefeito iria falar com elas na comunidade. Com essa medida, muitas agendas caíram pois havia muita associação de fachada e aqueles que não conseguiam reunir povo para receber o prefeito. Dissemos então que o povo iria deliberar sobre o orçamento, que poderia apresentar demandas e que essa seria uma nova forma de relacionamento do governo com a população.
A nossa primeira proposta de orçamento foi apresentada na Câmara num prazo já meio limite. Eu vinha do movimento comunitário, de mobilizações de ocupações de prédios públicos, essas coisas. Então a gente conhecia muitas lideranças comunitárias e as chamamos para conversar sobre o orçamento. Aí apresentamos uma proposta que foi absolutamente detonada por essas lideranças. Acharam que era uma proposta goela abaixo, que dissemos que iríamos discutir com o povo e não estávamos fazendo isso…
Era uma proposta de orçamento?
Não, era uma proposta de processo de discussão do orçamento. Até hoje eu costumo dizer que ele é um processo, que não tem uma forma pronta e acabada. Ele vai se remodelando no caminho. O pessoal não gostou muito, mas a gente colocou que havia o problema do prazo, do tempo, e eles aceitaram, sob a condição de que na próxima vez seria melhor discutido. Aí nós fomos para as regiões. Na época, Porto Alegre tinha uma regionalização absurda. As regiões eram imensas.
Nós preparamos uma forma de apresentar a nossa proposta, comparando o orçamento público com o orçamento doméstico, o salário com os impostos. Não era só um processo onde as pessoas iam dizer “quero calçar minha rua, melhorar minha escola e o transporte”; para nós era uma questão de entendimento e de protagonismo.
No início, as pessoas chegaram um pouco desconfiadas, pois a relação com a prefeitura sempre tinha sido clientelista até ali. Era uma relação direta. Muitos presidentes de associações eram cabos eleitorais. As pessoas brigavam com o vizinho e fundavam outra associação, ganhavam “ajuda” do governo, papel, caneta, essas coisas. Era um verdadeiro balcão de negócios.
Para mudar esse quadro, nós decidimos ir para as ruas e ouvir as pessoas para montar um processo de participação. Nosso primeiro erro teve a ver com a nossa vontade imensa de mudar. Nós dissemos para o povo: vocês vão dizer o que precisam. A periferia naquela época era completamente abandonada, havia muito esgoto a céu aberto. Na campanha eleitoral nós dissemos que o transporte seria prioridade. Na verdade, quando fomos ouvir as pessoas, o transporte não se manifestou como prioridade. Apareceu em terceiro lugar. A grande prioridade da população era saneamento básico.
Recebemos uma avalanche de demandas. As pessoas precisavam de tudo e não tinham muita noção do que era competência municipal, estadual ou federal. Então as coisas eram muito umbilicais, muito a “minha rua”. Fomos trabalhando esse conceito, reconhecendo que a rua de cada um é o lugar mais importante – e eu acredito nisso até hoje -, mas que ela faz parte de um bairro, que faz parte de uma região, que faz parte de um Estado, que faz parte de um País, que faz parte de um continente que, por sua vez, faz parte do planeta. Portanto, precisamos de muitas coisas no cotidiano, mas temos que pensar que para mudar essas coisas não podemos fazer isso só na nossa rua, precisamos levar em conta um contexto mais amplo que envolve questões como a do meio ambiente que atinge hoje todo o planeta. Na época as pessoas não se importavam muito com isso.
Esse processo de participação era também uma grande escola popular, de aprendizado, protagonismo e de construção de uma grande rede de solidariedade entre as pessoas. O conhecimento foi fazendo com que as pessoas se abrissem mais, fossem mais solidárias e enxergassem que outras regiões da cidade precisavam muito mais do que a sua naquele momento. Esse é um legado importante que infelizmente está morrendo agora, pois está reinando o “farinha pouca, o meu pirão primeiro”. Aquela rede de solidariedade que se formou nos primeiros anos está um pouco esquecida.
Então, no início, havia uma certa desconfiança entre a população que rapidamente evoluiu para a confiança?
Na verdade, a credibilidade do Orçamento Participativo só virá no segundo semestre de 1990. É bom não esquecer que estamos falando da aplicação de 1%, 2% do orçamento do município, o que é uma gota d’água no oceano. Só para dar um exemplo, quando tratamos da pavimentação, na hora de dividir os recursos disponíveis dava 500 metros de pavimento para cada região. Aí foi preciso definir prioridades. Vamos pavimentar onde? E as pessoas começaram a escolher: de frente à parada do ônibus, pois senão o ônibus não sobe em dia de chuva; na frente da escola ou na frente do posto de saúde e assim por diante. As pessoas começaram a entender que não tinha dinheiro pra tudo. Isso foi muito explicado no primeiro ano. De onde vem o orçamento municipal, quais os impostos, por que era importante pagar imposto. O IPTU representava cerca de 8% da arrecadação do município.
Então aos poucos fomos trabalhando essa questão do conhecimento, falando como era importante a participação da população para ajudar a criar novas políticas. Nós estimulamos muito o movimento organizado neste período, as associações de moradores e alguns conselhos populares que já existiam. A partir dali as pessoas multiplicavam o que recebiam de conhecimento e de novas informações. O esquema que funcionava até então era assim: o líder, que às vezes não era tão líder assim, detinha toda informação, sabia como tramitar uma questão na prefeitura ou nos gabinetes de vereadores, e não abria muito para outras pessoas se apropriarem desse conhecimento. Havia algumas exceções, mas essa era a regra. Com o Orçamento Participativo, as pessoas começaram a participar de um novo processo que envolvia decisão coletiva.
Quando o nosso primeiro orçamento foi entregue, em 1989, as pessoas foram para a Câmara para evitar que os vereadores fizessem emendas e destruíssem o que elas tinham construído junto com o governo municipal. Aí houve uma polêmica que, para nós, já era uma questão vencida envolvendo a relação entre a democracia representativa e a democracia participativa.
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